resistencia

Saturday, November 26, 2005

VOLTANDO ATRÁS

Volto àquela questão das perguntas sobre a fé de cada um. Não é ainda para discutir o significado da palavra crente na linguagem dos jornalistas, mas para partilhar com os visitantes do meu blogue, caso tenham paciência para me ler, alguns pensamentos que me nascem do cruzamento da memória daquela entrevista com as imagens de uma página do Evangelho.
Aqui vai um extracto da página que tenho meditado mais nos últimos dias:
Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és um profeta! Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém.
Jesus declarou-lhe: mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus
(Jo 4, 19-22).

A primeira tentação que me veio, ao recordar aquela pergunta do entrevistador da rádio à escritora, foi a de identificá-lo com a samaritana, ao inquirir do judeu que lhe pedira de beber, que pensava ele daquela velha questão, que opunha judeus e samaritanos, como uma das raízes fundamentais dos ódios que os separavam.
Depois, meditando mais longamente sobre a narrativa joanina, dei-me conta das diferenças: e, assim como não posso identificar a escritora, naquele diálogo, com o judeu que, à hora da sesta, cansado do caminho, pede de beber uma mulher samaritana, também seria muito mau identificar com esta o entrevistador curioso; ele que, como pude concluir pela sequência da entrevista, se identificava com a entrevistada, não pela necessidade que tinham ambos de um acolhimento verdadeiro e dignificante, mas pela má vontade em relação a uma terceira realidade, que poderíamos designar, em termos genéricos, pelo enquadramento institucional da comunidade crente.
Não vem aqui ao caso discutir as causas dessa má vontade, nem mesmo do direito de ambos a encontrar quem os ajude a superar essa má vontade, que, enquanto má, é contrária à dignidade humana.
Temos de nos ater ao contexto da entrevista, igual a tantas outras em que são profícuos os meios de comunicação social: não há nele nenhuma dinâmica de acolhimento, porque ninguém se apresenta com sede ou fome dele, ao contrário do que acontece junto do “poço” de Jacob, onde os dois protagonistas, cada qual a seu modo, começam por pôr em comum a respectiva sede, esperando que seja o outro a satisfazê-la.
É claro que quem pede primeiro de beber é o que tem uma sede mais profunda, porque mais humana, nascida, não apenas da violência dos raios solares e da dureza do caminho, mas da consciência dos aleijões de que são vítimas as pessoas que ao longo dele se encontram.
A samaritana só começou a perceber a verdadeira dimensão da sua sede, quando alguém, no momento em que lhe mostra que pode ser útil, a leva a descobrir que, afinal, do que precisa não é tanto da água do poço, como do dom de Deus, que se lhe apresenta na figura de um judeu que, sem deixar de o ser, deita por terra o judeu das tradições e preconceitos em que ela própria tinha sido criada.
Em que ficamos, afinal?
Se alguém, na rua ou noutro sítio, me perguntar se sou crente, devo responder sim ou não?
Creio que sim ou não, são dois advérbios demasiado curtos, na forma e no conteúdo, para dizerem tudo o que pode encerrar uma resposta, positiva ou negativa.
O que eu diria, e esta é a grande lição da narrativa joanina, é que me falta ainda libertar-me de muita coisa para recuperar a capacidade de espanto que, ao identificar a samaritana com as crianças inocentes, a torna igualmente capaz de descobrir, naquele que lhe pede de beber, o Messias, o Salvador do mundo, como dirão aquelas que ela traz aos pés de Jesus.
Isso impedir-me-á também de cair na cumplicidade que verifiquei naquele diálogo, jornalista/escritora: pergunta-se, não para aprender, mas para terçar armas em conjunto contar algo.
Nestes casos, Jesus, que encontrou muitos no seu caminho, também não respondia, a não ser indirectamente, deixando indicações especaiais para os seus discípulos.

Wednesday, November 23, 2005

Optimismo e esperança

Copio uma das páginas mais recentes do meu diário, para não edixar este espaço mais tempo sem algo meu: «Ligo o carro, e ouvem-se ainda as últimas palavras do communio, ... quia pius es... Depois entra a voz solene do barítono – libera me... – o coro, os outros solistas... e sinto que tenho de reorientar os pensamentos que me animam, no momento em que inicio a viagem de regresso a casa, depois daquela tão reconfortante partilha de ideias e projectos de vida espiritual.
Assim, quase sem esforço, torna-se-me claro como a perda da visão cristã da morte pode falsificar toda a nossa vida: porque, se não pensamos nela, vendo-a à luz da fé, acabamos por tomá-la como o que não é: ou tragédia sem remédio, ou esconderijo para não viver a vida em plenitude.
Continuo a viagem: Fischer Diskau, Victoria de los Angelis, Fauré... o criador e os intérpretes... Sinto necessidade de agradecer a Deus o génio que concedeu aos artistas e esta capacidade de me emocionar, de sentir a beleza da música... mas mais ainda, a graça de poder rezar com ela.
E na oração, quase sem dar por isso, o espírito vai-se ocupando de coisas tão sérias como a de o pensamento da morte poder transformar-se numa tentação... Tentação que, na nossa cultura, dominada pela absolutização das coisas efémeras, se esconde por detrás do medo da morte; que não deixa de ser um enorme tabu, pelo facto de se começar a falar dela: como aconteceu com o sexo, talvez se fale tanto pra banalizá-la, para se não ver o seu real significado.
Isto é: hoje, o comum das pessoas pensa na vida como se ela fosse o fim; vive-se sofregamente, porque se não tem esperança: a morte é o último fim, a queda no abismo do nada, que tem de se adiar o máximo, procurando mesmo não pensar nela, já que tal pensamento inquina os poucos dias de que podemos usufruir.
Os crentes seguem o caminho inverso: meditam frequentemente na morte para não perderem nunca de vista o que dá sentido à existência de todos e de cada um. Meditam na morte para se não esquecerem da Vida.
Para nós, urge recordá-lo uma e muitas vezes, a felicidade não tem nada de obsessivo ou angustiante: é apenas o cuidado de não delapidar o tempo, moeda insubstituível na conquista da eternidade.
É daqui que brota a radicalidade cristã vivida pelos santos e à qual todos somos chamados.
Leio e copio:
Mas a “radicalidade” não é “fundamentalismo”: não há nada de rígido na vida cristã autêntica; pelo contrário, a “perfeição evangélica” não admite “perfeições”; nada é perfeito e bastante para quem ama. Admite fraquezas, defeitos, quedas, e pecados até; o que não admite é conformismo, nem desistências, nem desânimos. É um romance de amor que só aceita um final feliz: a plena união com Deus. (Boletim do Oratório de São Josemaria, Novembro de 2005).
E fico a pensar na multidão de pessoas que conheci já – desde o lar onde aprendi os valores essenciais da vida, e onde se rezava todos os dias pelos mortos, cujos nomes, quando deles falávamos, se faziam sempre seguir de um belíssimo “que Deus haja” (os mais velhos diziam, “Deus lhe perdoe”, e eu ainda era jovem quando se começou a dizer, “que Deus tem”)... fico a pensar nessa multidão de pessoas que viveu e vive assim a sua condição humana e cristã. E sinto invadir-me uma onda de optimismo e esperança, porque, apesar dos pesares, o mundo não está tão mau como parece.

Tuesday, November 15, 2005

SER OU NÃO SER CRENTE

-É crente?
Uma pergunta que ouvi ainda hoje, naquela estação de rádio que sempre tomo como alternativa à confrangedora mediocridade das nossas emissoras, dos canais, todos os canais da nossa televisão… mas também o entrevistador deste programa, pretensamente cultural, achou que devia informar-se sobre a crença, ou ausência dela, no caso do seu entrevistado, ou entrevistada, porque se tratava de uma senhora, uma escritora espanhola que entrou na moda da literatura disfémica, que está a ser uma autêntica mina de ouro para as editoras.
A senhora respondeu como geralmente respondem os que tomam a sério essa pergunta, sem, no entanto se preocuparem com o essencial, que, em meu entender, seria o de esclarecer o verdadeiro significado da palavra crente.
Muito preocupada com a sua imagem, evitando uma resposta que despertasse nos “crentes” a suspeita de que não nutria respeito por eles, mas fornecendo ao entrevistador elementos suficientes para não a incluir entre aqueles que no fundo despreza.
Por uns instantes subiu-me à superfície da memória todo o cortejo de pessoas públicas que, ao ser-lhe dirigida tal pergunta, nos dão um triste exemplo de malabarismo, em busca de respostas que não comprometam demasiado… até porque, mais uma vez, dando à pergunta uma seriedade que não pode ter, ficam à mercê dos preconceitos que a inspiram.
Foi pensando nesse triste espectáculo que decidi sintetizar, para quem queira ver mais um aspecto da minha resistência ao nivelamento por baixo da nossa capacidade de pensar livremente, um artigo que encontrei numa revista espanhola que me chegou à mãos ontem.
Eis algumas das ideias aí expostas:

«Se um dia, na rua, alguém me perguntasse:
- O senhor é crente?
Com toda a sinceridade e com desejo de escandalizar um poucochinho, responderia:
- É claro que não.
Seria uma forma como qualquer outra, de dizer que sou católico, uma vez que nesta sociedade moderadamente pagã e laicista, nós cristãos distinguimo-nos dos que o não são, não tanto por aquilo em que acreditamos, como pelas coisas em que nos não apetece acreditar.
O paganismo é foi e é crente; é mesmo crédulo, supersticioso, idólatra, devotamente assustadiço diante das forças ocultas que imagina nos abismos das montanhas. (…)
Por outro lado, o laicismo, versão século XXI, criou um elenco interminável de dogmas politicamente correctos que se apresentam a si próprios como artigos de fé covil, se proclamam por todos os meios e cristalizam em frases-tópico que todo o bom democrata deve repetir de vez em quando e aceitá-las religiosamente se não quer ser anatematizado pelos inquisidores e mandado para as trevas da reacção e do fundamentalismo.
Por isso digo que não sou “crente” nem estou disposto a sê-lo.»
Quem tem ouvidos para ouvir ouça.
(Mundo Cristiano, nº 535, pg. 8)

Sunday, November 13, 2005

O JUIZ INÍQUO


Esta tarde, num momento de divagação, a poupar as alavancas do racicínio sério, deixei que deambulassem pela memória, entre outras coisas, alguns factos relacionados com a aplicação da justiaça, nos últimos meses, em Portugal. E lembrei-me do que escrevi no meu diário, ontem, ao fim da manhã.
Aí vai um pedaço:
Assim… mergulhado na penumbra silenciosa da catedral, enquanto não chegam… (os clientes, sussurra, no fundo de mim mesmo, entre a seriedade e a brincadeira, uma voz que me irrita e que procuro silenciar, influenciado pelo sentido menos nobre da palavra cliente), enquanto não chegam as pessoas que, cada qual a seu modo, vêm pedir-me ajuda.
Tento, antes de mais, saborear o belíssimo hino à Trindade com que iniciei a recitação da Liturgia das Horas.
Depois, aquele embora seja noite, as sombras que me envolvem e uma persistente névoa interior, atiram comigo para o evangelho que li e comentei há menos de uma hora:
Sábado da semana XXXII, um texto típico de São Lucas:

Naquele tempo, Jesus disse ais discípulos um parábola sobre a necessidade de orara sempre, sem desanimar: “Em certa cidade vivia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Havai naquela cidade uma viúva que vinha ter com ele e lhe dizia: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário’. Durante muito tempo ele não quis atendê-la. Mas depois disse consigo: ‘É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens; mas, porque esta viúva me importuna, vou fazer-lhe justiça, para que não venha incomodar-me indefinidamente´.
Escutai o que diz o juiz iníquo!... E Deus não havia fazer justiça aos seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite, e iria fazê-los esperar muito tempo? Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa. Mas, quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra? (Lc 18, 1-8)

Juiz iníquo…
É evidente que o objectivo primeiro da parábola, segundo o testemunho do próprio evangelista, é ilustrar a necessidade da perseverança na oração e a sua eficácia.
Mas podemos perguntar-nos onde está a iniquidade deste juiz, tão severamente censurado pela narrativa:
Não é, com toda a certeza, no facto de, como ele próprio confessa, não temer a Deus, nem respeitar os homens. Isso, quando muito, merecia que o classificássemos de ímpio, sem religião e sem simpatia pelas pessoas. Mas se o classificamos de juiz iníquo é porque falha no exercício da sua profissão: a iniquidade de um juiz, portanto, é uma questão profissional, não religiosa.
E, de facto, o protagonista da nossa parábola, é um péssimo profissional.
Sem perdermos tempo em análises mais complexas, é evidente que um juiz que age só sob pressão, mesmo que no fim lavre uma sentença tecnicamente justa, não dá corpo àquilo que é essencial a todo o sistema judiciário: acessível, rápido, objectivo e isento.
Na nossa tradição cultural, a justiça representa-se normalmente com uma figura de mulher, de olhos vendados, segurando uma balança.
De olhos vendados, para não ver nada que possa levar o juiz a influenciar o pendor dos pratos da balança.
Estou em crer que hoje, no império dos meios de comunicação social, deveríamos representar a justiça também de ouvidos tapados.
Aliás, Pilatos, que bem se pode tomar pelo protótipo do juiz iníquo, agiu mais sob a pressão do que ouviu do que sob a influência do que viu.
Talvez fosse bom não fecharmos os olhos aos Pilatos dos nossos dias, que abundam no meio judiciário, com outros tantos Cristos julgados sob pressão, e que podemos ser também nós –Cristo ou Pilatos, ou os dois simultaneamente…
Quem tem ouvidos para ouvir ouça... como no Evangelho.

Friday, November 11, 2005

A SAGA DO VÉU


De repente, tive a sensação de me encontrar nos finais do século XVIII, quando expressões como liberdade religiosa, separação da Igreja e do Estado, sociedade laica, significavam, tanto na mente dos seus utilizadores como nos factos que inspiravam, antes de mais e acima de tudo, cerceamento das liberdades relacionadas com a religião e o culto, intromissões inaceitáveis do poder político na esfera religiosa, perseguição aberta à Igreja:
Foi o período difícil da gestação dos grandes princípios que regeriam a futura sociedade democrática; e, ou por falta da linguagem adequada, ou por representações mentais não suficientemente superadas, a novidade não sabia impôr-se sem atacar as instituições que traziam consigo as nem sempre positivas marcas da história.
Dois séculos depois, tudo parecia superado, apesar da teimosa permanência de certos hábitos legislativos.
O pior é que alguns desses hábitos se têm agarrado como cogumelos ao tronco carcomido desta Europa sem alma, cujo envelhecimento se torna tanto mais crónico, quanto mais cresce a tirania do económico e do politicamente correcto.
Qualquer espírito lúcido se dá conta disto e descobre nessa tirania as raízes da crise por que estamos a passar.
Não presumo ser um desses espíritos, mas a inquietação que se apoderou de mim quando, vai para dos anos, a França saiu como saiu, se é que saiu, da ridícula crise do véu, transforma-se em angústia, quando um tribunal internacional – a funcionar na Europa – vem dizer que o governo turco o cumpre o seu dever ao proibir uma jovem muçulmana de entrar na Universidade com o chamado “véu islâmico”: tal proibição, ensina o referido tribunal, corresponde à tutela dos direitos humanos.
Mas que direitos?
Será que a liberdade religiosa se defende proibindo os crentes de manifestar a respectiva crença?
O que é, afinal, a tolerância?
Será verdadeiramente democrático um regime que ignora a dimensão religiosa dos cidadãos? E quando proíbe que eles vivam essa dimensão no que ela tem de político ( isto é, de relação com a polis)?
Que humanismo tem a União Europeia para oferecer à Turquia?

A TRAGÉDIA DA ARANHA


A história, muito adornada com imagens de todo o tipo, encheu de encanto a minha adolescência, um pouco perdida na floresta de sonhos que quase a esmagavam, retardando o corte das amarras que a impediam de superar-se a si própria.
Era uma vez… começava o pregador – esquecia-me de dizer que estávamos em retiro, (o “retiro anual”, que, nesse tempo, durava cinco dias completos) –era um vez uma jovem aranha que, no seu afã de autonomia e aventura, depois de percorrer bosque em busca de um espaço para se instalar, segundo as exigências da sua natureza de sugadora de insectos voadores, escolheu uma preciosa clareira, onde, pondo em acção toda as capacidades da sua juvenil tecnologia, instala uma teia que, a uma altura suficiente para não sofrer os embates dos animais de vista baixa – entre os quais ela incluía o homem – poda aprisionar precisamente os insectos de sangue mais fresco.
E aranha, instalada na sua teia, que revistava com frequência, reparando algum fio mais gasto pelas caçadas que favorecia, foi engordando, engordando, engordando… mas foi também perdendo a memória, que diminuía na proporção em que aumentava o seu peso. Esqueceu-se, por conseguinte, de muitos procedimentos absolutamente necessários à sua manutenção. E começou a querer modernizar a teia, eliminando dela tudo o que lhe parecia pouco consentâneo com o progresso das técnicas aracnídeas mais avançadas.
Neste afã de modernizar, cada vez mais desmemoriada, começou também a cortar os fios que não sabia como justificar: foi cortando, cortando, cortando… até que um dia, a teia, sem as amarras que a sustinham no alto, veio parar ao chão. A pobre aranha, tão gorda e velha como estava, nem chegou a perceber o que lhe acontecera. Ficou para ali, à espera do primeiro passante, que, distraído com os seus próprios objectivos, a esmagaria impiedosamente.

Procurei reconstituir a narração da fábula, contada naquele retiro, já não me recordo exactamente a que propósito (estou a ficar um pouco como a aranha).
Não me recordo a que propósito foi contada, mas devo dizer que ela me vem insistentemente à memória, perante o que se está a passar nesta Europa, que alguém classifica de rica, velha, gorda e estéril.
Quem tiver ouvidos para ouvir ouça.

Wednesday, November 09, 2005

O TESPOURO DO TEMPO



Para a Guida, que me enviou o texto seguinte:
A vida em contra-relógio...

«Um relojoeiro estava a concertar o pêndulo de um relógio. E eis que, para sua surpresa viu que o pêndulo tomou a palavra para dizer:
- Por favor, senhor relojoeiro, não me conserte. Seria um acto de amabilidade da sua parte. Imagine só o número de vezes que tenho de fazer tic-tac dia e noite...
Imensas vezes cada minuto aumenta os sessenta minutos que tem a hora, vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias ao ano. É assim um ano após outro... Se me conserta, imagine os milhões de “tic-tac” que tenho de fazer. Não consigo suportar tanta monotonia.
O relojoeiro, que escutou atentamente, respondeu com sabedoria:
- Não penses no futuro, limita-te a fazer um “tic-tac” de cada vez e gozarás de cada “tic-tac” durante o resto da tua vida.
O pêndulo aceitou o conselho do relojoeiro e ainda hoje continua a fazer plenamente cada “tic-tac” como se fosse o único.
In “Boas Noites” (Pedrosa Ferreira)


Vivemos num tempo marcado pela velocidade, com tudo o que isto implica de avanços e retrocessos ao nível da qualidade de vida das pessoas e da sociedade em geral. Parece que já não sabemos viver de outra forma. A vida tomou-se uma corrida contra o tempo, um contra-relógio alucinante em que, sem nos darmos conta, vamos gastando as horas e os dias numa maratona interminável sempre em busca da última novidade que, quando a atingimos, já deixou de ser novidade, porque já está ultrapassada.
Não temos tempo para saborear a vida com os seus encantos e beleza, com o seu significado e transcendência, com a sua profundidade e valor. Ainda não digerimos o momento presente e já estamos a pensar no amanhã, porque é preciso não deixar fugir o futuro com o que isso implica de novidade e atracção. Corremos o risco de viver sempre no futuro sem apreciar os encantos do presente. Somos máquinas de reciclagem do tempo que não chegam a apreciar o que adquirem, porque é preciso estar a par do cronómetro que já se encarregou de criar novas ilusões que facilmente fazem esquecer aquilo que se conseguiu com tanto suor. Somos um produto da máquina que construímos em vez de sermos nós a comandá-la. Somos instrumento daquilo que fabricamos e não vemos maneira de fugir, porque temos medo de descarrilar da engrenagem que nos enjaula em nome dum progresso e duma liberdade falaciosas.
O monstro do futuro que nos promete felicidades sempre adiadas é o mesmo que nos vai retirando a verdadeira felicidade que não se vive no amanhã, mas no agora, porque quem não vive o presente, não vive, pois o futuro não se vive, apenas se sonha. E, nesta roda viva em que nos sentimos atordoados, não encontramos uma porta de saída, porque o círculo vicioso da procura faz-nos regressar sempre ao mesmo ponto de partida que deixa de ser linear para ser circular.
Perdemos o sentido da liberdade que nos vem da autonomia do pensamento, de sermos construtores e protagonistas da nossa história edificada com alicerces firmes dum ontem que foi avaliado para gerar frutos amadurecidos de modo a serem saboreados no hoje e poderem gerar substrato para um amanhã de certeza e não de medos que atrofiam e amesquinham.
Precisamos de viver o tempo e não gastar o tempo, precisamos de sentir a vida e não arrastar-nos pela vida. Só tem medo do futuro quem não vive o presente, porque é no hoje da nossa existência que nós temos que nos sentir vivos e realizados. O presente é exactamente “um presente” que nos é oferecido em cada momento como dom de Deus a convidar-nos ao encantamento e à felicidade. Precisamos de saber aproveitar esta benção de olhar optimista que se projecta para o alto em gesto agradecido e não de olhar derrotado e desesperante como quem não vê além da biqueira do sapato, numa corrida em busca do vazio.
O momento presente deve ser sempre um espaço de louvor agradecido ao Senhor do tempo que no-lo dá para viver, saboreando cada “tic-tac” da vida, sem contar os “tic-tac's” que poderemos ou não viver, porque quem vive cada segundo com verdadeiro significado, para esse o tempo não conta, pois cada momento sabe a eternidade!
Saibamos aproveitar o tempo valorizando-nos a nós mesmos, valorizando o encanto desta maravilha que é o paraíso que Deus criou para nós, valorizando os relacionamentos humanos que nos fazem sentir mais pessoas, tudo isto num hino agradecido Àquele que nos ensina a “viver” e não a sobreviver.
No “tic-tac” da vida há sempre um Relojoeiro a apreciar o ritmo silencioso, mas certeiro, com que roda cada segundo do relógio do “presente” que colocou na nossa mão.
In “Sê!” (Pe. José Augusto)

Comentários para quê?
Permito-me apenas acrescentar mais um texto de um autor espiritual dos nossos dias, a quem devo muito e que já foi canonizado:
Não existem datas más ou inoportunas. Todos os dias são bons para servir a Deus. Só surgem os maus dias quando o homem os desaproveita com a sua falta de fé, com a sua preguiça, com a sua inércia, que o inclina a não trabalhar com Deus e por Deus. (…) O tempo é um tesouro que passa, que se escapa, que corre pelas nossas mãos como a água pelas penhas altas. Ontem já passou, e o dia de hoje está a passar. Amanhã será bem depressa outro ontem. A duração de uma vida é muito curta. Mas, quantas coisas se podem realizar neste pequeno espaço, por amor de Deus!

Saturday, November 05, 2005

PROFISSIONAL: SIM OU NÃO? I


O Padre Pantaleão, que era ligeiramente mais velho do que eu, mas que fazia o favor de ser meu amigo, irritava-se sempre, quando, nalguma repartição pública, lhe perguntavam pela profissão – porque o seu B.I. dizia que não tinha profissão – e, sem qualquer cerimónia, acrescentavam à sua identificação, sacerdote católico.
E protestava, dizendo que ser padre não era nenhuma profissão, que se identificava mais com um estado de vida, etc.
E talvez tivesse razão: mas o problema, sobre o qual quis algumas vezes conversar com ele serenamente – o que não era fácil, dada a paixão que punha em tudo… que saudades desses momentos, meu caro amigo! – o problema é que não podemos nunca pegar nas palavras isolando-as do seu vastíssimo contexto, fora do qual podem significar tudo o que quisermos, como muito bem sabem os demagogos de todos os quadrantes ideológicos.
Eu também estou convencido de que ser padre não é uma profissão, se por tal entendemos um trabalho a que se tem acesso e pelo qual se é remunerado, segundo regras de mercado comummente aceites e sempre negociáveis.
Diria que ser padre é uma forma de existência cristã, da qual são específicas algumas ocupações, que podem ser equiparadas, pelo menos no que se refere a direitos sociais, com os respectivos encargos, a outras profissões, não específicas do “ser padre”.
Além disso, qualquer sacerdote, mantendo a sua condição de sacerdote, pode, por razões de ordem pastoral, exercer profissões que não são específicas do “ser padre”; e fá-lo legitimamente, desde que em comunhão com o Presbitério, cuja cabeça é o bispo diocesano, ou, no caso dos religiosos, o seu superior maior, e respeitando as normas legais vigentes.
Vai esta reflexão para introduzir outra mais ampla, se os meus visitantes acharem oportuno; isto, sem queremos entrar na polémica sobre o político profissional, ainda que aproveitando as sugestões que nos traz para esclarecer algumas dúvidas a respeito de profissão, profissionalismo, função, funcionário e funcionalismo.

Wednesday, November 02, 2005

COMO DESTRUIR UM POVO




Desde sempre, os grandes impérios procuraram manter-se dando à unidade política, geralmente construída pela força das armas, unidade cultural; o que implicava necessariamente a morte de outras culturas, no que adquiria especial vantagem, nem sempre a do povo vencedor, mas aquela que se tornava mais acessível, pela riqueza dos seus elementos e a funcionalidade dos instrumentos de comunicação, entre os quais desempenham um papel decisivo a língua e a religião.
A língua e a religião.
Foi por isso que, a quando da da reforma litúrgica preconizada pelo último concílio ecuménico, nos países com várias línguas, mas com uma língua oficial comum, apesar das recomendações no sentido de se conservar esta como a língua oficial das celebração dos sacramentos, incluindo a Eucaristia, todos os grupos linguísticos, mesmo os pouco numerosos, se apressaram, com o aplauso dos linguistas, crentes ou não, a traduzir na própria língua os livros litúrgicos.
Pertence também a esta recuperação e fixação instintiva da própria identidade a nem sempre criteriosa introdução, nas celebrações da fé, de certos elementos culturais que ajudam a identificar o crente como membro de um determinado povo.
Abrindo um pouco a janela ao pessimismo, diríamos que, na Europa actual, situados numa mentalidade pós-cristã – conceito de certo modo paralelo ao de pós- moderno, mas muito mais negativo -, perdemos a sensibilidade relativa aos valores integrados pela inculturação da mensagem cristã, operada, com avanços e recuos, incluindo algumas tensões de efeitos dolorosos, ao longo do primeiro milénio.
Será isso que nos reduz a capacidade de perceber as autênticas raízes do chamado fundamentalismo islâmico e sobretudo da violência que se apoia nele?
Seja como for, é essa perda de sensibilidade que abre de par em par as portas à degradação da língua, instrumento indispensável na defesa da identidade cultural, à manipulação consumística das efemérides mais sagradas, à invasão de costumes que nada têm a ver com as nossas tradições culturais.
De que estou eu a falar?
Toda a gente sabe. Mas podemos, noutra ocasião, discutir alguns casos concretos.