resistencia

Sunday, January 29, 2006

DOM E TAREFA



Como há muito não escrevo nada neste blogue, aproveito o facto de se andar por aqui a falar da vida para transcrever uma página do meu diário, que erscrevi no dia em que meu pai completaria cento e cinco anos. Vai a repetição da homenagem; as fotogarfias - espero que os meus amigos me perdoem a ousadia - querem homenagear, além da amizade, as mulheres, em geral, e as mães em particular, porque é no seu regaço que, de modo especial, o dom da vida se transforma em tarefa carinhosa. Aí vai o texto:
Dom e tarefa
Em tempo de reflexão: pedaços de alma que procuro introduzir nestes dias de repouso que queria fossem também de revigoramento espiritual.
De repente, a quebrar uma ligeira fuga do pensamento para outras áreas, ouço o pregador: porque isto de sermos criados à imagem e semelhança de Deus, não tem nada a ver com uma forma donde pudéssemos ter saído perfeitos: em nós, a imagem de Deus, é um Dom e uma tarefa, tanto no natural como no sobrenatural.
E fiquei mais distraído, a pensar nos fundamentos e nas consequências desta doutrina.
A olhar para o chão onde punha os pés, não fosse o diabo tecê-las, e puxando pela cabeça, um pouco azamboada, chego aos meus aposentos, com poucas comodidades, mas suficientemente provido de livros, a área onde não encontrei ainda nenhum amigo que me traísse.

Abro a Bíblia e leio:
Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.
Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; criou-os homem e mulher. Deus abençoou-os e disse-lhes: Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que rastejam sobre terra.
E disse Deus ainda: Eis que vos vou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes servirá de alimento. E assim se fez.
Deus contemplou toda a sua obra e viu que era muito bom. Houve tarde e manhã. Foi o sexto dia (Gen 1, 26-31).

Bem se vê que quem continua a dizer que a perspectiva da Bíblia sobre a Criação é pessimista, ou não a leu, ou, o que é pior, leu-a com os olhos dos seus detractores.
E, ainda por cima, esquece-se de como toda a cultura ocidental, mesmo em ambiente de supino secularismo, como é aquele em que vivemos, está marcada pela festa que caracteriza o “descanso” de Deus, ao sétimo dia:
Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou do seu trabalho. Ele abençoou o sétimo dia e consagrou-o, porque nesse dia repousara de toda a obra da Criação (Gén 2,2-3).

Mas acontece que todo o texto de Gén 1, 26 a 2, 3, que, segundo os especialistas, assenta numa profunda reflexão teológica sobre o conteúdo de Gén 2, 4-25, contém dados que os próprios crentes tendem a esquecer, não tirando deles a luz que oferecem para o seu modo de estar no mundo e para a luta que devem travar para que se salve a sua verdade; essencial, porque a verdade do mundo é também a verdade do homem.
Quando eu era estudante de Teologia falava-se muito de fixismo e dinamismo (entenda-se evolucionismo), no modo de conceber a acção criadora de Deus.
Naturalmente que já então se considerava o fixismo definitivamente ultrapassado, não só por imposição das ciências, mas também por exigência de uma correcta interpretação dos textos – Escritura, Tradição e Magistério.
Mas a preocupação de estabelecer uma noção correcta de evolucionismo, sempre com os olhos nos erros dos outros, fez com que não se aprofundasse devidamente o conteúdo da Revelação, que nos fala da criação do mundo para o homem e deste “à imagem e semelhança de Deus”... imagem e semelhança, que constituem, ao mesmo tempo, um dom e um tarefa; dom e tarefa, que se estendem, nas palavras do próprio Criador, ao mundo dos outros seres.
Em primeiro lugar, Deus diz ao homem – que Ele fizera macho e fêmea, (para usarmos o realismo do texto original), um para o outro, mas sem se confundirem um com o outro, com uma autonomia que se afirma quando a mútua dependência assenta na respectiva dignidade, que não deslustra em nada – ao homem, assim referido, Deus diz, em primeiro lugar: “crescei e multiplicai-vos”.
Tendemos todos a interpretar estas palavras como uma ordem de Deus para o exercício da procriação, uma explicitação do que estava implícito na diferenciação dos sexos, que não fora um acidente biológico, mas algo querido expressamente pelo Criador, com um significado que ia muito para além das relações puramente físicas.
Ora, precisamente, assim como a diferenciação sexual não foi querida por Deus só em função da geração de novos seres, também aquele “crescei e multiplicai-vos” significa muitas outras coisas que tendemos a esquecer.
Significa sobretudo que essa imagem de Deus, estendida a todo o mundo criado, é algo a realizar continuamente: porque o seu aperfeiçoamento se confia à liberdade do homem, e porque a cada momento ela é posta em risco pelo mau uso dessa liberdade.
A dinâmica do progresso encontra aqui os seus fundamentos teológicos.
Mas o texto não nos dá apenas os fundamentos: ele fornece também os critérios de leitura que nos permitem distinguir o verdadeiro progresso do falso.
Fica bem recordar aqui uma frase do Cardeal Ratzinger, o actual Papa Bento XVI: Ser homem recomeça do princípio em cada ser humano.
Ou seja, se a minha interpretação é exacta: a nível do esse, ser em acto, como diriam os escolásticos, a pessoa humana – homem ou mulher – como pessoa, nunca está totalmente formada: o primeiro momento da sua existência, que é aquele em que no ventre materno, da união de dois elementos fornecidos, um pelo pai e outro pela mãe, surge uma terceira vida, que se desenvolverá naturalmente, se lhe não forem postos obstáculos, esse primeiro momento é o princípio no qual começa, para essa pessoa, o ser homem, membro de pleno direito do género humano.
Começa, para cada pessoa; mas devemos afirmar que esse começo, na perspectiva da humanidade, é um recomeço. E um recomeço que urge proteger, para que o ser homem se torne cada vez mais real, em todas as fases queridas pela natureza: no ventre materno, no berço, na escola, em todas as suas fases, na profissão, na teia das relações humanas, até à consumação da história individual de cada um.
Que encanto fazer estas reflexões no centésimo quinto aniversário do nascimento do homem que Deus escolheu para me transmitir o dom da vida! E que não se limitou a uma pura transmissão biológica: mas procurou, como lhe cumpria, realizar o mandato em plenitude e até ao fim.
Crescei e multiplicai-vos, diz o Criador à humanidade, deixando a todos, cada qual segundo as próprias circunstâncias, a tarefa de crescer e fazer que cresçam os outros, também segundo as próprias circunstâncias.
Antes de irmos por diante com as reivindicações de rua, inspiradas em egoísmos individuais e corporativos, é necessário que nos perguntemos que ideia de progresso é a nossa.

Thursday, January 12, 2006

A DOR COMO JANELA


Um pouco na linha do que dizia no meu último "post", que, de facto, quis a Providência me fosse particularmente presente nas duas semanas que passaram, não apenas como eco de uma teoria abstracta, mas como luz para os momentos mais ignificativos. Luz que ilumina e força que ajuda a resistir... resistir à morte onde é a vida que chama por nós.
Chamo janela à dor e não estrela, porque a dor não tem luminosidade suficiente: mas ela é verdadeira janela aberta para o clarão da estrela que mostra o caminho e alumai a caminhada.
Para os meus amigos mais íntimos transcervo parte do que ecsrevi no meu diário, na terceira página deste 2006.
Foi o funeral do Filipe.
Pobre rapaz! De saúde menos que débil, sem grande disciplina na alimentação e nos cuidados médicos, sempre imaginei que a morte o colheria cedo; e, quando os pais e os irmãos desabafavam, lamentando aquela falta de cuidado, repetia-lhes que o deixassem viver feliz. Porque o Filipe, embora não tivesse ar de infeliz, tinha um carácter reservado, com alguns assomos de teimosia que me deixavam pensativo, suspeitando de que, lá bem no fundo do coração guardava mágoas antigas… talvez a recusa em aceitar o estatuto de “diminuído” que demasiado cedo lhe aplicaram, privando-o assim de alguns bens, nomeadamente de uma certa cultura, a que tinha direito como os outros e de que teria certamente sido capaz.
Afinal, a morte veio colhê-lo, minutos depois de expirar o ano, na estrada do regresso a casa, após a festa… que ele gostava de se divertir.
Estimado pela generosidade com que ajudava as pessoas – havia até quem explorasse essa generosidade –, poucos apreciaram devidamente a sua inteligência e o bom senso com que resolvia situações complicadas da vida.
É o segundo sobrinho que acompanho à sepultura.
Chego a casa noite cerrada, e, por estranho que pareça, sinto que acabo de viver um especial momento natalício:
Pelo rejuvenescimento que significa para mim qualquer encontro com as raízes, mesmo quando se trata de um funeral, sobretudo se vivido assim, em constante apelo para os valores que alimentam essas raízes e que nos ajudam a resistir, para que a morte não tenha a última palavra.
E não tem mesmo, porque, ao arrepio da vida que actualmente nos obrigam a viver, e talvez graças à intercessão do membro cuja morte nos reune, antes de nos separarmos, como banho reconfortante, conseguimos criar um ar de festa de família, e sempre regressamos com o propósito de repetir os encontros em circunstâncias diversas.

Não será isto unir o Natal ao Calvário, encontrar na dor a janela que nos mostra a estrela do Messias?