resistencia

Thursday, September 20, 2007

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

Vai mais uma memória... ainda com mais metáforas.

O Móvel
Estava ali, rodeado de cadeiras e cadeirinhas, tudo no mesmo estilo, a denunciar sonhos e fantasias inconfessáveis: porque, apesar de serem cada vez mais comuns, desdizem do que se mostra a todos.
Móvel de luxo, exigia cuidados especiais, não fossem os olhos dos visitantes descobrir desleixos inadequados à riqueza que se exibia.
E não havia tempo nem dinheiro para mais nada... nem sequer para apreciar o móvel, que parecia ir-se tornando a pouco e pouco instância de censura, que se revelava especialmente cruel, porque o carácter silencioso do seu discurso não dava lugar a resposta de tipo nenhum.
Era um móvel: impassivel no rigor do seu estilo, continuava naquele canto, intolerante, reclamando os cuidados da primeira hora... afinal, haviam-no colocado ali por razões que não quadram com a felicidade, que nasce do amor oblativo, sem cálculos nem condições.
Como acontecia com o resto daquela vivenda, a sala parecia-me triste, sem luz, janelas sempre fechadas, não fosse o sol ou a poeira alterar as cores do móvel, que, à força de ser resguardado, já nem como adorno servia.
Em minha casa era tudo muito mais simples: uma mesa grande, quase à altura da janela, bancos encostados às paredes – cadeiras, duas ou três, mas só na “casa de fora”, onde também havia um loiceira, obra do artesão da aldeia, que também fizera a cantareira da cozinha e o armário encravado na parede, ao qual tínhamos acesso livre, porque aí se guardava a boroa com que reduzíamos o espaço entre as refeições principais.
Tudo mais pobre? Eu diria: Tudo mais à nossa medida. Aadquirido a partir de um orçamento onde o que contava eram as pessoas, e o resto só na medida em que podia servi-las: Por isso nos sentíamos tão à vontade no meio daquilo tudo, tão felizes, apesar do ar pobre que tinham as coisas.
Que também não se revoltavam contra nós quando algum descuido, sobretudo dos mais novos provocava estragos.

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA



Para ajudar a memória a resistir ao desgaste do tempo, há anos que vou escrevendo textos em vário estilos: Diário, Memórias, Reflexões soltas, à mercê dos acontecimentos. Tudo para entretenimento pessoal. Aos visitantes dos meus blogues já ofereci algumas páginas do diário. Agora vão alguns rabiscos das memórias: factos e metáforas que cada um lerá como achar melhor, com inteira liberdade.

O BANDO

Éramos quatro, com diferenças de idade que não iam além dos dois anos.
Eu era o mais velho, o que, dado o meu feitio, não me trazia vantagens de espécie nenhuma; só desvantagens, como a de ser permanentemente responsabilizado pelas desordens do grupo.
O mais mimado, filho único de pais abonados, um pouco acima da média, vinha logo a seguir.
Depois era o meu irmão, talvez o mais ladino de todos, ainda que seguido muito de perto, na idade e nas iniciativas pelo primo.
Primo... afinal éramos todos parentes: porque o outro, que parecia um pouco mais distante, era, pelo lado da mãe, neto dos irmãos dos nossos avós.
E divertíamo-nos imenso... até quando eu me afligia com o pressentimento de que certas brincadeiras iriam acabar mal.
Mas nosso parente mais distante ficava muitas vezes para trás, sem saber explicar porquê: analisando os factos passadas mais de seis décadas, dou-me conta de que o cordão umbilical, quando não cortado a tempo, atrofia o desenvolvimento do ser humano; e atrofia-o precisamente naquilo em que, para ser adequado à natureza, esse desenvolvimento mais depende do tempo e do aproveitamento das oportunidades reais: ou seja, na paternidade/maternidade e na filiação.
Será esta uma das consequências fatais da existência de um único filho no seio do casal?
Ele era bom rapaz; nem parecia especialmente egoista: tinha muita coisa que nós não podíamos ter, mas nunca me pareceu particularmente feliz por isso; às vezes dava até a impressão do contrário. Uma certa tristeza por ter o que não tínhamos... ou talvez porque isso não nos importava absolutamente nada.
Mas era de uma incapacidade de decisão que chegava a irritar-nos: porque a minha mãe para aqui, a minha mãe para ali... E havia ocasiões em que ficávamos com medo que as aventuras menos confessáveis chegassem aos ouvidos dos nossos pais através daquela mãe, que ainda hoje me vem inevitavelmente à memória, sempre que se fala de amor materno excessivamente possessivo.
Assim que naquele bando de crianças, no tempo em que não havia televisão nem computadores, e o rádio, o comum das pessoas da aldeia, pura fantasia, a alegria de conviver, até para o que não seria assim tão correcto, sobretudo na mente dos adultos, tinha as proporções do agregado familiar: mais crianças, mais imaginação, mais alegria.

Saturday, September 15, 2007

MEMÓRIA E IDENTIDADE



É assim com os indivíduos, não podia ser de outro modo com as sociedades e as nações: a perda da memória produz a perda da identidade, e sem identidade o homem não sabe de modo nenhum que fazer consigo. E quando isto acontece com as instituições, ou elas recuperam rapidamente a memória, ou o seu fim está próximo.
Como é que, por exemplo, os crentes não se deram ainda conta de que na essência da liturgia está o memorial?
O memorial do Senhor, que não se limita a recordar, mas que recorda... E a liturgia celebra os mistérios da fé associando-os à lembrança daqueles que melhor os viveram.
Vêm-me estas ideias enquanto me passa pela memória a mobilização da freguesia do Souto da Carpalhosa, no dia 15 de Setembro de 1957, que também caiu ao domingo: era a festa das bodas de ouro do seu pároco, o P. Manuel Ferreira Geraldo.
Celebravam-se nesse dia, por questões de calendário, mas aproveitando o facto de coincidir com os cinquenta anos da sua chegada à freguesia como coadjutor do P. Jacninto António Lopes, de quem fora o braço direito durarnte mais de trinta anos e ao qual sucedera na função de pároco.
Que eu saiba, ninguém moveu uma palha. Como passara depercebido o cenetnário da nomeação do P. Jacindo António Lopes, passou agora também este.
Quem conhece um pouco a história da freguesia sabe quanto ela deve à memória destas pessoas, cujo esquecimento não é apenas uma injustiça muito grave: constitui também um perigoso sintoma.

Wednesday, September 05, 2007

DEZ ANOS DEPOIS





No aniversário da Beata Teresa

Senhor, aqui me tens, esmagado mais uma vez pela dor de verificar como o mundo tem cada vez menos capacidade para perceber o que verdadeiramente significa viver da fé.
No aniversário do último combate desse gigante de vida teologal que foi a Beata Teresa de Calcutá, causa-me uma tristeza imensa a superficialidade com que se lêem e comentam alguns dos seus escritos íntimos.

Depois reparo no que tenho diante de mim:
Deixas-me ferido pela dor desta jovem mãe, que, no meu fraco entender, bem podias ter deixado gozar a felicidade que lhe fizeste experimentar, qundo, pela primeira vez, apertou ao peito o filho que tanto desejara.
Vejo aquele sorriso triste, ao falar-me das perspectivas que a ciência médica – eles não são deuses, mas portam-se como se o fossem – abre no que dia rsepeito à saúde do filho: - Desejei tanto – diz ela - ter um menino... e agora...
É reflexão de mãe, porque o olhar que lança sobre o bébé, depois daquele agora... vai ornado de um enorme carinho.

Senhor, olho para ti, porque tudo o que é grande na vida vem de ti, incluindo o amor dorido das mães.
Mas tu não dizes nada... talvez para que não me distraia da grandeza que me vais fazendo descobrir através da solidão com que têm de se sofrer certas dores humanas: porque realmente não há dores que não sejam humanas.

Mais uma vez o teu silêncio!
Ou o clamor desses braços estendidos, coração aberto, rosto pálido, olhos cerrados... O silêncio não é teu é de Deus. Tu, aí, és o homem que quiseste ser para que me não sentisse abandonado... de um abandono tanto mais doloroso, quanto a nobreza com que procuro servir o Amor me torna mais sensível.
Eu sei:
A vida teologal é assim.
Faz que não me esqueça nunca de vir aqui, quando me sentir assim!

Monday, September 03, 2007

HORIZONTES DE ESPERANÇA



Estamos no fim do Verão. Não vale a pena querer alterar o calendário, nem mesmo quando os boletins meteorológicos nos prometem isto e aquilo, a favor de umas férias que já passaram, com o mar cada vez mais distante: no meio de tudo, inquieta-me apenas que o consumismo continue ganhando terreno; o que signfica a permanência da desumanização da vida.
Páro alguns minutos contemplando o grande crucifixo da igreja, mergulhada numa penumbra esatégica: meio de evitar o aquecimento exagerado do espaço.
Para mim, um crucifixo é muito diferente de uma cruz nua, como aquelas que a progressiva protestantização de certos ambientes religiosos pôs em moda.
Claro. Piores ainda, para a minha sensibilidade de crente, são as cruzes que exibem uma imagem tão estranha de Cristo, dependente de tão peculiares cânones artísticos, que não consigo descodificar a sua mensagem a tempo de reconfortar a minha fé.
Não era assim o grande crucifixo diante do qual me pus em oração esta tarde: o artista, sem exibicionismos provocantes, preocupara-se com reproduzir a serenidade que, apesar da morte, conserva o rosto daquele que dissera, ao despedir-se dos amigos: «Anunciei-vos estas coisas para que, em mim, tenhais a paz. No mundo, tereis tribulações; mas, tende confiança: Eu já venci o mundo!» (João: 16, 33).
E lembrei-me de que há precisamente 1417 anos, o clero romano escolhia para seu bispo Gregório, patrício que, após larga experiência na administração, decidira entregar-se a Deus na vida monacal. Ao mosteiro fora buscá-lo, para difícil missão diplomática, o seu antecessor, que pouco depois morria vítima da peste, como muitos outros habitantes da velha Roma.
Esta, como todo o mundo ocidental, não passava de um montão de ruínas.As estruturas do império haviam-se afundado por completo, e já não valia a pena esperar a ajuda de Bizâncio, que, afinal, no Ocidente nunca procurara mais do que satisfação para as suas ambições políticas e religiosas.
Gregório, entre a incompetência dos exarcas bizantinos e o perigo das invasões dos povos do norte, percebe que tem de salvar, ao mesmo tempo, o cristiansimo e a herança cultural que lhe servira de discurso nos cinco séculos precedentes: envia missionários para as zonas ainda não evangelizadas do Ocidente e organiza a vida cultural, de modo que não falte à fé das nações que vão surgindo das ruinas, uma estrutura que lhe permita uma autêntica encarnação na vida individual e comunitária.
Esperança e coragem operativas, que estão na raiz daquela unidade a que, precisamente dois séculos depois, um sucessor seu, menos feliz na acção, mas igualmente lúcido, perante o perigo islâmico, quis mobilizar com o nome de Europa.
São Gregório Magno, viria a morrer em 604, nas vésperas da avalanche muçulmana – Maomé contava então trinta e quatro anos – que viria a ser detida precisamente pelo mundo cultural e religioso de que ele lançara as raízes.