resistencia

Friday, December 23, 2005

DO CALVÁRIO PARA O PRESÉPIO


Como há muito que não escrevo na blogosfera, pensei que poderia hoje, nas vésperas do Natal, contrariando alguns sentimentos que, apesar das aparências, talvez não estejam cem por cento de acordo com o sentido mais profundo do mistério, trtazer para aqui mais uma página do meu diário. É uma forma de manter a orientação incial deste blogue e de homenagear os artistas - hoje penso principalmente nos artistas - que me têm ajudado a emocionar-me com os grandes mistériso da minha fé.


Tenebrae factae sunt, dum crucifixissent Jesum Judaei; et circa horam nonam exclamavit Jesus, voce magna: «Deus meus, ut quid me derelequisti?». Et inclinato capite, emisit spiritum. Exclamans Jesus voce magna, ait «Pater, in manus tuas commendo spiritum meum». Et inclinato capite…

Fez-se noite, quando os Judeus crucificaram Jesus ; e, por volta da hora nona, Jesus exclamou em alta voz: «Meu Deus, porque me abandonaste?». E, inclinando a cabeça, expirou.
Exclamando em alta voz, diz, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito». E, inclinando a cabeça….

É a parte final da Passione secondo Giovanni, de Francesco Corteccia. Executa a Schola Cantorum “Francesco Coradini”, dirigida por Fosco Corti.
Nas vésperas do Natal, tenho a grata surpresa de encontrar uma jóia de arte – como pude deixar tão longamente este CD, silencioso, no fundo da gaveta, entre os objectos sem direito a especial interesse? – uma joia que me reconcilia com a quadra que estamos vivendo.
Devo a Corteccia e aos que interpretam a sua música o encanto que me ajuda a perceber como no mistério de Cristo tudo se harmoniza, se cruza e se entrelaça: a serenidade que esta música introduz no Calvário, ilustrando o amor sem limites daquele “inclinato capite”, atira comigo para o carinho e a ternura do Presépio:
Cristo suspenso da cruz e o Menino dormindo no regaço da mãe, são duas faces do mesmo amor sem limites, da mesma loucura de um Deus que permanentemente se excede no dar-se aos homens.
Os homens, que, assim como nesta quadra O trocam pelas alegrias efémeras do consumismo reinante, na Páscoa Lhe voltam as costas em direcção às estâncias de prazer fácil.
E Ele, que, na sua bondade infinita, continua a oferecer a todos o mesmo perdão: parece-me mais encantador o sorriso do Menino do Presépio, porque ele me recorda a prece da cruz: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem.
Assim, já não encontro sentido nas recriminações que me vêm teimosamente ao espírito, perante os natais que se celebram por aí: se são errados, e estou em crer que o são, em muitos casos, o Presépio projectado na Cruz, ou esta como reflexo daquele, obrigam-me a transformar as recriminações em apelos, a revolta interior em exercícios de tolerância.
Tolerância, que, assim enquadrada, está muito longe de ser um comodista deixa correr.

Tuesday, December 13, 2005

OS DEFICES DE PORTUGAL


Eu que fiz Portugal e que o perdi
em cada porto onde plantei o meu sinal.
Eu que fui descobrir e nunca descobri
que o porto por achar ficava em Portugal.

Eu que matei roubei eu que não minto
se vos disser que fui pirata e ladrão.
Eu que fui como Fernão Mendes Pinto
o diabo e o deus da minha peregrinação.

(Manuel Alegre, do poema, Lusíada Exilado)

Está em moda falar-se de défice por toda a parte – os meus amigos do liberalismo linguístico diriam, por tudo quanto é sítio… É o défice nas finanças, o terrível défice das contas públicas, que parece medrar com as referências que lhe fazem políticos e economistas, o défice da balança comercial, o défice de cultura que amarfanha regiões e povos… e, veja-se, o défice de democracia, que alguns gostam de atribuir a certas formas de autonomia regional.
Ainda se não tinha dado o nome a uma das mais crónicas doenças deste país à beira mar plantado, ao cantar o qual, Camões, põe em realce, com a perspicácia do seu génio e grandeza inultrapassada do seu canto.

Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.

Como disseram outros, com mais ciência do que eu, sob esta referência de Camões ao desprezo da poesia, há a denúncia a vários vícios da governação pública que, desde o século XVI, não têm feito mais do que agravar-se. E o resultado tem sido, como seria inevitável, a progressiva perda da identidade nacional.
Veio agora um candidato à Presidência da República, que também é poeta – por vezes com sabor camoniano – no calor da polémica sobre os défices que nos amarguram os dias, dizer alto e bom som, que o pior dos nossos défices é o défice de Portugalidade. Não sei exactamente o quis dizer Manuel Alegre, que leio com agrado há muitos anos, ao empregar a expressão… ele diz da, não de; mas se percebi aonde queria chegar, parece-me que a ausência de artigo ficaria melhor; está, pelo menos mais de acordo com o que eu próprio quero dizer quando afirmo que, neste ponto, o candidato à Presidência tem razão. Só não sei – e não saber é muito mais negativo do que duvidar – só não sei se será votando nele que estaremos a caminho de resolver esse défice.
Porque está ideologicamente muito perto dos que, nas últimas décadas, têm confundido democratização do ensino com descida de nível das respectivas exigências; e acabam de anunciar o fim da obrigatoriedade do Português para cursos frequentados por uma grande parte dos jovens portugueses.
Os versos de Manuel Alegre que transcrevo no início fazem parte de um poema que considero emblemático, sobretudo pelo enorme conjunto de referências culturais e históricas que contém, com uma muito feliz intuição sobre o que define o modo português de estar no mundo.
Mas duvido - aqui trata-se de uma verdadeira dúvida – que a política educacional seguida pela maioria dos que pertencem à sua área ideológica ajude as futuras gerações a entendê-lo.
Não escrevi uma linha sequer com intuitos eleitorais.
Só gostaria que se pensasse mais no que realmente faz de Portugal um país dependente. Porque se fosse a pobreza natural dos nossos recursos, não teríamso satdo tão sujeitos à Europa no século XVIII, como estivemos.

Wednesday, December 07, 2005

NASCER E TORNAR-SE

Este texto é especialmente dedicado ao Zé, que nos seus estudos de catequética, tem aprendido coisas muito interessantes, mas está a guardar tudo para depois… Como no seu último comentário às minhas reflexões sobre o episódio – o quadro, como ele lhe chama – da samaritana, citou um dos escritores eclesiásticos – tecnicamente não se pode incluir entre os Santos Padres – que muito admiro e cuja sorte me causa uma certa pena, lembrei-me de ir buscar o contexto da frase referida e acrescentar alguns pensamentos pessoais; digo acrescentar, não completar, nem muito menos corrigir… por razões óbvias.

Estamos no Apologético, capítulo XVIII, 1-4.

O fogoso advogado da África romana, que neste capítulo usa também outra expressão muito célebre – o testimonium animae naturaliter christianae! – imagina que os seus leitores pagãos mais cultos ridicularizam os artigos de fé dos cristãos; por isso, depois de comparar as virtudes cívicas de uns e de outros, e de contrapor às crenças dos pagãos a fé dos cristãos, acrescenta:

Haec [dogmata christiana] et nos risimus aliquando. De vestris sumus. Fiunt non nascuntur cristiani.

(Uma tradução brasileira de que não gosto)
Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de riso. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens tornam-se, não nascem cristãos!

A quem percebe italiano, ofereço uma tradução que me parece melhor.
Anch'io ho riso un tempo di ciò. Provengo dai vostri. Cristiani si diventa, non si nasce.

Com a sua linguagem incisiva, aprendida na prática forense, Tertuliano faz uma afirmação que é ainda mais importante para os cristãos do que para os pagãos, a quem se dirige neste livro. E, como acontece com outras frases lapidares, da Sagrada Escritura e da Tradição, a profundidade do seu conteúdo perde-se quando a citamos como um lugar comum.
Que não se nasce cristão… bem o sabe a Igreja, que nunca celebra um mistério da fé sem fazer dessa celebração uma catequese, que pode ir da multiplicação das leituras e respectivo comentário, com cânticos e intervenções explicativas, como acontece na celebração da Eucaristia, até à curtíssima frase bíblica que o sacerdote pronuncia quando recebe ou despede o penitente na celebração individual do sacramento da Reconciliação. E os outros tipos de catequese, para os diferentes níveis etários, destinam-se primordialmente a ajudar a crescer na fé; a tornar-se cristão.
Fico à espera do comentário do nosso estudante romano… Pessoalmente, estou convencido de que grande parte das dificuldades com que, neste campo, lutam os pastores, provêm do esquecimento deste objectivo primordial.
Mas o que agrava tudo é que os cristãos, sacerdotes e leigos, na sua grande maioria, se esqueceram de que se ninguém nasce cristão, temos de estar permanentemente a construir a nossa identidade: o baptismo não é um documento de pasta, mas um sacramento pelo qual Deus nos introduz na vida, que exige cuidados permanentes.
Para terminar este arrazoado, que vai já excessivamente longo, diria que a frase de Tertuliano – não nascemos cristãos, tornamo-nos – implica uma dupla atenção: em relação a nós, que não podemos parar, porque o tornar-se cristão supõe uma dinâmica que só termina com o fim da nossa existência histórica (leia-se morte); em relação aos outros, que temos de ser permanentemente dádiva e acolhimento… para que todos em conjunto e cada um individualmente, crentes e não crentes, caminhemos sem cessar para a identificação com a mediada perfeita, que nos é dada pela humanidade de Cristo (cf. Ef 4,13).