resistencia

Sunday, October 25, 2009

DE NOVO SARAMAGO


A propósito do comentário do Pedro ao meu último Post:

Tenho muitos amigos com o nome de Pedro, entre os quais alguns familiares, que estimo muito.
Não sei se este é um deles, nem naturalmente qual deles é; mas respondo com muita amizade, porque, seja quem for, ficou a merecer-me ainda mais consideração, depois da liberdade com que, pensa ele, discordou de mim. Digo pensa ele, porque, de facto, o que ele comenta não é o meu texto, mas o ambiente criado pelas declarações de Saramago, ambiente do qual também eu me envergonho, ainda que talvez não pelas mesmas razões.

De facto, não foi minha intenção comentar Saramago, mas apenas dizer a um senhor jornalista que, para mim, as declarações do escritor, bem como a generalidade da sua obra, não são nem incómodas nem geniais.
E disse porquê, com a mesma liberdade com que o jornalista fez as referidas afirmações.

Para enquadrar devidamente o discurso, começo por transcrever o texto do meu comentador:
Independentemente da sua opinião, Saramago, como qualquer outra pessoa, tem direito a ela. E neste caso, diga-se em boa verdade que não é uma opinião descabida e muito menos fruto de ignorância. Podemos dizer que é uma leitura diferente da feita por um crente, mas isso não a torna nem melhor nem pior, nem mais nem menos válida. Quanto à sua obra literária leia quem quiser. Não sou fã mas reconheço-lhe valor (e a contar pelos prémios e volume de vendas não sou o único). Quanto à reacção dos responsáveis religiosos e políticos que não tardaram em atacá-lo pessoalmente considero-a irresponsável e uma vergonha, fruto da arrogância própria de quem se acha dono da verdade e se sente intimidado perante a diferença. Além do mais ou têm memória curta ou a crença faz com que seja estrategicamente selectiva pois bem mais graves foram as palavras do Papa Bento XVI quando já na qualidade de representante da Igreja Católica disse que o Corão era um livro carregado de violência e que Maomé apenas trouxe coisas malvadas e desumanas. No meio privado entendo todas as críticas e opiniões, feitas sobre qualquer pessoa ou assunto, desde que sejam honestas e educadas, fazê-lo para a comunicação social é algo totalmente diferente.

Pretende este texto comentar o seguinte:
Volto, passado mais de um mês, só para dizer que o último livro de Saramago não é, como pretendeu aquele jornalista que tive a infelicidade de ouvir, nem incómodo nem genial.
Não é incómodo para mim, como não o é para milhões de crentes, que, ao contrário do que pensa Saramago e tantos ignorantes da nossa praça, sabem que a Bíblia é um conjunto de livros, com uma vastíssima variedade de estilos, mar imenso de elementos culturais; enfim, palavra humana que, e isto só os crentes o entendem, serve de veículo a uma mensagem divina. E, isto também só os crentes o entendem, Deus não selecciona os Seus instrumentos.
Em suma, digamos sem complexos, a Bíblia dos crentes, cristãos, judeus e muçulmanos, pouco ou nada tem a ver com a Bíblia de Saramago.
Também acho que não é genial, embora respeite a opinião contrária dos que estudam a sua obra literária, enquanto literária, com critérios verdadeiramente científicos.
Em meu entender, Saramago, como escritor é pouco original; inclusivamente quanto aos temas, que lhe vêm da moda do disfemismo religioso, do qual imita autores que estão muito acima dele.
Uma coisa me deixa triste, no meio disto tudo: É que um português laureado com o Prémio Nobel da Literatura leia a Bíblia e fale dela como faria um iletrado das nossas aldeias que tivesse perdido a fé numa qualquer encruzilhada desta vida, em que sobram os salteadores.

Sem entrar em questões técnicas, para as quais não tenho competência, direi que o texto bíblico, qualquer que ele seja, se é verdadeiramente bíblico, tem, pelo menos, dois níveis de leitura: o primeiro na ordem da acessibilidade corresponde ao de qualquer outro texto. Sobre ele pode haver todo o tipo de opiniões, consoante a sensibilidade e a cultura de cada um.
Mas há também o nível da revelação divina: e aqui só os crentes têm autoridade para falar.
É desta bíblia que falo quando digo que a Bíblia dos crentes, cristãos, judeus e muçulmanos, pouco ou nada tem a ver com a Bíblia de Saramago. O que não quer dizer que esta, que também é minha quando a leio como simples obra literária, não possa ser objecto de muitas leituras, como qualquer romance, incluindo os de Saramago. Sinto que tenho, pelo menos, uma vantagem em relação a Saramago ou a qualquer outro que leia a Bíblia como simples produto cultural: porque além de crente, que busca no texto bíblico uma mensagem divina, também o estudo em chave cultural. E neste caso, por estranho que pareça, estou muitas vezes de acordo com Saramago.
Mas, de facto, não foi a Saramago que quis responder, nem era minha intenção entrar na polémica gerada pelas suas palavras, mais do que pelo livro, que tem de ser analisado com critérios literários e acabou-se.
Da sua obra disse que a não a achava genial e não retiro uma palavra ao que escrevi, aliás salvaguardando as opiniões de especialistas que pensem de outro modo.
Mas insisto nos critérios literários, que têm de ser intrínsecos à obra. Além disso, com alguma imodéstia, penso que quem dedicou mais de seis décadas aos estudos literários, abrangendo uma grande diversidade de séculos, línguas e culturas, tem pelo menos o direito de opinar prescindindo das cabalas dos prémios e dos jogos de marketing.

A terminar, porque se trata de uma questão de justiça e verdade dos factos, gostaria de convidar o meu comentador e outros leitores a relerem o discurso de Bento XVI, pronunciado na Universidade de Ratisbona, a 12 de Setembro de 2006:
Transcrevo os dois parágrafos que serviram de base para os ataques de que foi alvo.
Diz o Papa, depois de falar na necessidade de um diálogo amadurecido entre fé e razão:
Tudo isto me voltou à mente, quando recentemente li a parte – publicada pelo professor Theodore Khoury (Münster) – do diálogo que o douto imperador bizantino Manuel II Paleólogo teve com um persa erudito sobre cristianismo e islão e sobre a verdade de ambos, talvez durante os acampamentos de inverno no ano de 1391 em Ankara. Presumivelmente terá sido o próprio imperador que depois, durante o assédio de Constantinopla entre 1394 e 1402, escreveu este diálogo; deste modo se explicaria por que aparecem os seus raciocínios referidos de forma muito mais pormenorizada que os do seu interlocutor persa. O diálogo cobre todo o âmbito das estruturas da fé contidas na Bíblia e no Alcorão, detendo-se principalmente sobre a imagem de Deus e do homem mas também – e repetidamente, como era de esperar – sobre a relação entre as três «Leis» ou três «ordens de vida», como então se designava o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Alcorão. Por agora, nesta lição, não pretendo falar disso; primeiro gostava de acenar brevemente a um assunto – aliás bastante marginal na estrutura de todo o diálogo – que me fascinou no contexto do tema «fé e razão» e vai servir como ponto de partida para as minhas reflexões sobre este tema.
No sétimo colóquio (διάλεξις – controvérsia) publicado pelo Prof. Khoury, o imperador aborda o tema da jihād, da guerra santa. O imperador sabia seguramente que, na sura 2, 256, lê-se: «Nenhuma coacção nas coisas de fé». Esta é provavelmente uma das suras do período inicial – segundo uma parte dos peritos – quando o próprio Maomé se encontrava ainda sem poder e ameaçado. Naturalmente, sobre a guerra santa, o imperador conhecia também as disposições que se foram desenvolvendo posteriormente e se fixaram no Alcorão. Sem se deter em pormenores como a diferença de tratamento entre os que possuem o «Livro» e os «incrédulos», ele, de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: «Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava» O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão ríspido, passa a explicar minuciosamente os motivos pelos quais não é razoável a difusão da fé mediante a violência. Esta está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele: «Deus não se compraz com o sangue; não agir segundo a razão – «σὺν λόγω» – é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, e não da violência nem da ameaça... Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa...».
Não quero substituir-me à análise de quem se dispuser a ler o texto; permito-me apensa antecipar duas observações:
Em primeiro lugar, de facto, na Universidade de Ratisbona, Bento XVI não fala na qualidade de representante da Igreja Católica, mas como Professor daquela Universidade, que profere a tradicional lição de despedida; lição que não proferira quando deixara a cátedra para assumir as funções de Arcebispo de Munique-Freising.
Estamos assim, como é fácil de perceber, perante um texto privado, que não pode em caso nenhum ser visto como tomada de posição da Igreja, que o autor não representa ao falar como catedrático de uma Faculdade, ainda que seja de Teologia.
Mas o mais importante é que o Prof. Joseph Ratzinger não faz nenhuma das afirmações que lhe são atribuídas.
Lendo bem o texto, sem ideias preconcebidas, pode até dizer-se que rejeita essas afirmações, já que rejeita o tom do imperador e chama a atenção para o facto de ele omitir precisamente o que diz o Alcorão contra a violência na propagação da fé.
Realmente, do que se trata, na conversa do imperador bizantino com o intelectual persa, é da ilegitimidade da jihad, a guerra santa islâmica, que, como frisa Bento XVI, não está de acordo com o próprio Alcorão.
Finalmente, o tema do discurso do Papa, que não fala na sua condição de Papa, é precisamente a necessidade de evitar que a fé se transforme em fanatismo, e a razão em tirania, o que só se consegue com o diálogo amadurecido entre as duas.
Com um grande abraço de amizade
AAP

Monday, October 19, 2009

NEM INCÓMODO NEM GENIAL


Volto, passado mais de um mês, só para dizer que o último livro de Saramago não é, como pretendeu aquele jornalista que tive a infelicidade de ouvir, nem incómodo nem genial.
Não é incómodo para mim, como não o é para milhões de crentes, que, ao contrário do que pensa Saramago e tantos ignorantes da nossa praça, sabem que a Bíblia é um conjunto de livros, com uma vastíssima variedade de estilos, mar imenso de elementos culturais; enfim, palavra humana que, e isto só os crentes o entendem, serve de veículo a uma mensagem divina. E, isto também só os crentes o entendem, Deus não selecciona os Seus instrumentos.
Em suma, digamos sem complexos, a Bíblia dos crentes, cristãos, judeus e muçulmanos, pouco ou nada tem a ver com a Bíblia de Saramago.
Também acho que não é genial, embora respeite a opinião contrária dos que estudam a sua obra literária, enquanto literária, com critérios verdadeiramente científicos.
Em meu entender, Saramago, como escritor é pouco original; inclusivamente quanto aos temas, que lhe vêm da moda do disfemismo religioso, do qual imita autores que estão muito acima dele.
Uma coisa me deixa triste, no meio disto tudo: É que um português laureado com o Prémio Nobel da Literatura leia a Bíblia e fale dela como faria um iletrado das nossas aldeias que tivesse perdido a fé numa qualquer encruzilhada desta vida, em que sdobram os salteadores.