resistencia

Tuesday, January 15, 2008

ENTRE A FRUSTRAÇÃO E A SAUDADE





Fim da manhã de um lindo dia do Inverno Romano! Boa compensação para a chuva e o frio que ultimamente nos têm atormentado: adivinha-se esta preciosa claridade solar através dos janelões que dão para o pátio borrominiano – os italianos chmam-lhe cortile, palavra muito mais simpática –, onde, durante mais de dois séculos, os oratorianos rezaram, passearam, conversaram e certamente também discutiram. Discussões de bom nível intelectual, como competia a quem, graças à generosidade de um humanista português, tinha à mão, em sua própria casa, a maior e a mais bem dotada biblioteca pública, fora dos muros do Vaticano.
Pobre Aquiles Estaço!
Já com o material de trabalho nos braços, antes de me retirar da sala de leitura e estudo, olho pela última vez a expressão daquele sorriso sofrido, que parece trazer consigo todo o desencanto de uma vida em que as amigos se foram escapando, um a um, até fiacrem só os livros.
Os livros, que acabaram também por esquecê-lo, tantas foram as amnésias que os assaltaram, desde que sairam das mãos do seu proprietário.
Sacudo um mau pensamento que me agride com violência, como a querer que a frustração vença a saudade, e os sentimentos com que saio deste edifício da última fase do barroco romano, desdigam de tudo o que vivi o longo destas semanas: momentos altos de encontro com o passado de uma cultura mais que milenar e o presente de uma fé que só para os distraídos se confunde com ela; e ainda, horas de alegria esfusiante com amigos de tantos lados... alguns que teimam em fazer-me crer que não terei o destino de Aquiles Estaço.
Também, diga-se em abono da verdade, as grandes frustrações que emolduram a história de certos personagens têm a medida das suas vidas: quem caminha na planície, não está em perigo de rolar pela encosta abaixo.
Vou guardar as saudades.
Roma é um bom sítio para rezar, estudar e divertir-se com os amigos.
Daqui, deste portal da Chiesa Nuova, um abraço para todos os que me ajudaram viver de modo humano estes dias passados nas margens do Tibre.

Thursday, January 10, 2008

O SORRISO DE DEUS




Dedico esta página do meu diário aos rebentos mis tenros do "bando" Aveiro-Marques-Ramos, que deu um colorido especail à minha segunda semana de Roma:
Beijinhos para a Laura, a Matilde e a Maria. As outras ficam para depois.

Decididamente, não posso dizer que me tenham corrido mal as coisas ao longo destas semanas - vou já na quarta e terei mais uma -, passadas no centro histórico de Roma, procurando conjugar o alarme permanente das mazelas da idade, com a força dos sonhos, que, quer se queira quer não, assim como são compatíveis com o peso dos anos, também surgem das ruinas e dos materiais que trazem consigo a memória das gerações que por eles passaram.
Surpresas agradáveis, no meio de tanta coisa que já esperávamos fosse assim – umas boas, outras más, como em todas as circunstâncias da vida – e os percalços que não esperamos mas que dão sabor à monotonia dos dias.
Vinha a pensar nisto, hoje, ao fim da manhã, quando procurava esquecer o incómodo dos solavancos do autocarro – condutores especialmente nervosos encontram-se em todas as latitudes – com o chilreio das crianças que vinham certamente desde o capolinea, ali, à beira da Piazza Venezia: idade do Ensino Básico, caras geralmente irradiando luz de aurora, ocupavam todos os lugares sentados, de um modo geral, elas mais para diante, eles mais nos bancos detrás, e divertiam-se com tudo o que lhes passava diante dos olhos.
Eu divertia-me com o seu divertimento.
Tanto, que quase me esquecia que chegara o momento de sair.
Reentrei no corre-corre da rua, das passadeiras de peões onde se corre um risco termendo de ser atropelado, no prosaico arrumar das coisas para que seja menos complicado retomar o trabalho... mas, sem ter feito nada para isso, senti-me com nova força para viver: aquelas crianças divertidas fizeram-me pensar mais uma vez no sorriso de Deus sobre um mundo que Lhe foge, mas que Ele não desiste de amar.

Monday, January 07, 2008

O LADO BOM DA QUESTÃO



Mais uma vez... Quantas não foram já, desde aquele quentíssimo Julho de 1995, quando Roma guardava ainda as vestes de que se adornara para celebrar o quarto centenário da morte daquele florentino romanizado que devia passar à história como “o santo do bom humor”!
Mais uma vez subo os cento e cinco degraus da escadaria renascentista que dá acesso à sala de leitura da Biblioteca Vallicelliana.
Levo comigo uma suspeita, nascida na sexta-feira passada, de que alguém anda em demanda daquele manuscrito: o que isto traz consigo para o meu plano de trabalho, já tão carcomido por todo o tipo de incidentes, faz com que os horizontes do espírito se me tornem ainda mais sombrios do que o ar com que Roma despertou esta manhã.
Depois, a pouco e pouco, os temores vão-se confirmando: na sala de leitura, alguém se sentou onde eu costumo trabalhar, por haver perto uma tomada de corrente eléctrica... da qual não tem necessidade a pessoa em questão; o que me irrita ainda mais.
Encontro outra relativamente perto, preparo os apetrechos, peço o texto que deixei reservado da última vez, e, concentrado nas minhas inquietações, abarco de novo com o olhar o mundo que me rodeia, quando me dou conta de que os funcionários estão a braços com um problema que não sabem como resolver: afinal há dois candidatos. Eu e a pessoa ao meu lado, por sinal, dou-me agora conta disso, muito jovem. E os funcionários querem que sejamos nós a resolver o problema; cresce a minha irritação: mas não foi o manuscrito reservado por mim?
Chegamos a acordo rapidamente, porque tenho dois poderosos argumentos a meu favor: reserva feita e... me despiace, signorina: io vengo da si lontano!
Eh va bene! Facia lei!
Mergulho nos meandros complicados da caligrafia do nosso humanista, lançando de vez quando um olhar curioso sobre os velhíssimos volumes que a minha jovem companheira de mesa e concorrente na leitura de Aquiles Estaço, foi transportando para a sua frente.

Chego ao fim: procuro garantir a posse do manuscrito nos próximos dias, junto do funcionário que entretanto ocupou o lugar da vigilância – tenho deste funcionário gratíssimas recordações – e com uma conversa rápida de bons entendedores, com a jovem estudiosa de livros antigos.
Quando começo a descida da escadaria, já no terceiro lanço, deixando para trás a estátua de Alexandre VII, sinto de repente uma alegria estranha: nem sequer me incomoda perceber que o céu de Roma está ainda mais carregado, que provavelmente vou ter de abrir o guarda-chuva na espera do autocarro.
Ora, ainda bem!
Aquiles Estaço, o hnumanista português mais conhecido, nos séculos XVI e XVII, nos ambientes da edição e estudo das obras da Antiguidade clássica e patrística, pode não ter em Portugal quem se lembre dele. Mas eu, que alguns consideram um dinossauro dos estudos humanísticos, encontro uma jovem estudante dos arredores de Roma, que procura, na biblioteca por ele fundada, o mais precioso dos seus mansucritos.
É ou não é o lado bom de uma péssima questão?

Sunday, January 06, 2008

A PERTURBAÇÃO DO PODER


Hoje decidi oferecer aos que por qualquer motivo vierem a este blogue, alguns parágrafos de uma longa reflexão desta manhã, ainda não concluída, porque nela tento reunir pensamentos que vêm de muito longe: alguns já marcados pela frustração dos desejos cujo incumprimento – aqui está uma palavra que repugna à minha sensibildade de amante da língua materna – é irremediável.

Antes de entrar na dinâmica das considerações puramente espirituais, a ordenar mais uma vez os pensamentos que a celebração do mistério há tantos anos desperta no meu coração de crente, apetece-me uma breve reflexão, pessoalíssima, ainda que, segundo creio, respeitadora do texto bíblico; e também, se me não engano, com particular actualidade, tendo em conta as leituras que se fizeram e continuam a fazer, em Portugal, do discurso do Papa aos bispos portugueses, por altura da visita Ad sacra limina Apostolorum.
Contemplo Jerusalém, a cidade santa dos Judeus, como realidade material, humana, cultural, política, religiosa e simbólica, que assim nos fala dela o texto evangélico:
As instituições funcionavam bastante bem, dada a plataforma de entendimento que se conseguira erguer sobre a habilidade política de Roma e o pragmatismo igualmente habilidoso da Sinagoga.
Aparentemente, pelo menos, temos o quadro ideal para o acolhimento devido ao Messias, o Ungido do Senhor, que vinha salvar e dar sentido a tudo isso.
E, no entanto, quando se fala dos sinais da sua chegada, o rei Herodes perturbou-se e toda a Jerusalém com ele.
A mim, o que me espanta é esta perturbação geral:
Que Herodes se perturbasse perante a hipótese de um novo concorrente, não espantaria quem conhecesse a história do seu reinado, vermelho do sangue das vítimas da sua ambição e dos seus medos.
Agora a cidade, com todos os representantes de uma fé e de uma cultura que há séculos vivia da esperança daquela vinda, anunciada pelos Profetas e cultivada por tantos estudiosos, isso é que me espanta.
E espanta-me tanto mais, quanto vemos que, na hora de agir, Herodes recupera o domínio das próprias ideias e organiza o mais maquiavélico dos planos que se conhece na história do mundo ocidental. Um plano que só não atinge plenamente os seus objectivos, porque quem conduz a história é o próprio Deus.
Mas a frieza do tirano não desiste, perante o primeiro fracasso: e Belém, no dizer do evangelista, chorará demoradamente a chacina das suas crianças.
E tudo, pasme-se, utilizando as armas e a impunidade resultantes daquele entendimento entre os detentores dos dois poderes.
Como podia deixar de me doer – e já lá vão muitos anos que me dói – esta tragédia de uma cegueira que parece específica das estruturas bem montadas, das plataformas de entendimento que acabam sempre por servir os filhos das trevas?


Thursday, January 03, 2008

ARRIVEDERCI (A) ROMA




II
O triunfo da simplicidade

Princípio da tarde de um belíssimo dia de Dezembro, já quase a expirar o ano.
De pé, dando as voltas que exige o conjugar o gozo estético com a espera dos amigos... devem ter ficado todos lá para trás, claro. Com os incentivos às compras espalhados por todos os cantos, é de crer que não tenham chegado ainda; mas, para não haver surpresas, um olho atento as chgedas e às partidas, enquanto o outro se diverte, saltando da paisagem arquitectónica para a humana, e o pensamento corre, de trás para a frente, do hoje para o ontem, esquadrinhando as marcas históricas e os desafios que apontam para o futuro.
Assis, quando a contemplo lá em cima, casas apinhadas em magote, como que agarrando-se umas à outras para não virem pela encosta abaixo, é um grito de solidariedade: da que há e da que nos falta.
Solidários e simples, diz-nos o jovem burguês de Assis que, no início do século XIII, ficou tão impressionado com a descoberta da sua filiação divina, que preferiu ficar nú em plena praça pública a guardar algo que o impedisse de viver essa filiação em coerência absoluta.
Atrás de mim, as basílicas, que correspondem mais aos sonhos de garndeza de Frei Elias do que à simplicidade do Poverello: talvez precisássemos de uma réplica de tudo isto para, ao abrigo da impertinência dos turistas, continuarmos a ouvir a mensagem de Francisco: poeta e santo – dizem-me que todos os santos têm o seu quê de poetas – que desde o século treze aponta um caminho para a paz do qual só duvida quem nunca quis segui-lo: a começar pela paz interior, que nasce de não nos darmos excessiva importância, de querermos muito, mas nos contentarmos com pouco... e nos divertirmos com os nossos próprios fracassos, como pode acontecer, por exemplo, no tal jogo dos limões, do ganso, do teco e do tico, em que consumimos as duas horas de comboio entre Assis e Roma, como se fossem poucos minutos.