resistencia

Saturday, August 25, 2007

VÍTIMAS


Acabo de ler a biografia do Padre Barros Gomes (Aletheia Editores, Lisboa 2006), que os contemporâneos classificaram de “sábio e de santo”, e que morreu assassinado por agitadores republicanos, injectados de ódio às ordens religiosas, a 4 de Outubro de 1910.
Por coincidência, termino esta leitura no dia em que se completam cem anos sobre a eleição do primeiro Presidente da República Portuguesa, Dr. Manuel de Arriaga.
As informações que consegui colher sobre os últimos anos de vida desta figura da Primeira República levaram-me a pensar que também o Dr. Arriaga merecia que se escrevesse sobre ele com um pouco mais de objectividade, até para se perceber que afinal, só se pode dizer que o Padre Barros Gomes foi vítima da República segundo um certo sentido. E creio que todos, republicanos ou não, estamos interessados em descobrir esse sentido.

Thursday, August 23, 2007

CANÇÃO DO MENINO PERDIDO



Botôes que não desabrocharam

Não se trata de obsessão, nem tão pouco de querer mexer em feridas que, quem as tem mais vivas e quiçá mais dolorosas, deseja esquecer rapidamente.
Eu diria que é principalmente a solidariedade com esses corações, amargurados por uma táctica de morte que lhes nega alternativas sérias ao conflito que alguma vez se instalou dentro deles.
Ofereço aos outros, aos que pensam que resolvem tudo eliminando os mais incómodos dados da questão, a tradução livre deste poema castelhano que há dias me chegou às mãos:

Eu tinha um berço preparado...
Uma nascente misteriosa
inundava-me de sonhos de carinho.
Um rio morno e límpido
fluía docemente,
e algo me repetia
que seria torrente
de vida que à minha vida chegaria...
Sei que todo o botão
sonhará como eu. No fundo do coração
pressentia a chama; mas ainda seria
apenas um sonho que nascia.
Eu fui soma de luas impacientes
até que chegou um dia
em que algo me desatou, tão repentinamente,
que ao invadir-me a água da brisa
por um bosque de sangue quente,
me devorou o lobo enorme da morte
nos próprios umbrais da vida.


Wednesday, August 22, 2007

CULTURA SEM ALMA?


Cultura sem alma

Há oito dias que me andam na mente as memórias e as imagens daquele quinze de Agosto numa encantadora aldeia do Limousin.
Almoço no seio de uma família franco-portuguesa, casa alugada pelo município, espaçosa, com sinais de desafogo talvez um pouco exagerados, dada a sua condição de trabalhadores rurais, com ar de festa, porque o quinze de Agosto, mais do que o catortze de Julho, é, em todas as aldeias francesas, dia de festa.
Em Affieux – assim se chama essa encantadora aldeia – como por quase todo o Limousin, já não se sabe porque é festa.
Ficou-me particularmente gavada na memória a tarde, no centro da aldeia, com aquela deliciosa paródia dos concursos hípicos: um humorismo que só os franceses do Languedoque, ainda tão próximos da cultura provençal, sabem transformar assim, em espectáculo que diverte sem ofender.
Aproveitei uma pçausa para visitar a igreja de Saiant-Pardoux, um santo invocado para os amles da vista: igreja paroquial, marcada pela história da povoação, desde os tempos áureos da pática religiosa, até à desertificação, que se foi acentuando a partir dos anos atribulados da Revolução.
Ficaram as relíquias da arquitectura.
Quando parei para pensar um pouco, pojectando na linguagem das obras de arte, talvez demasiado triste para o momento, os ecos que me vinham lá de fora, e me lembrei de que ali, naquele ambiente de festa, ninguém, nem os mais antigos, se lembravam do que fizera do quinze de Agosto aquilo que ainda é, sobretudo nos meios rurais da França, tive um pressentimento, que hoje é algo mais do que isso:
Todos caminhamos para um tempo em que da cultura europeia nos ficará apenas a máscara, um corpo sem alma.

Friday, August 17, 2007

A HORA DOS ZAROLHOS

Escrevo depois daquela reportagem sobre o livro que está agora no top das vendas: The Secret. Vai em inglês, não só por ser o idioma original, mas também porque se trata de uma área linguística particularmente atingida pelo fenómeno da prostituição da litertaura, que campeia por aí, em todo este perdido mundo ocidental.
Escuto os entrevistados: uns leram o livro e acham que é assim mesmo; outros não leram, mas, porque querem ser modernos, também acham que é assim mesmo...
Fala-se de ter pensamentos positivos, querer teimosamente, atrair coisas boas... até que alguém se atreve a empregar a palavra optimismo.
E eu venero a memória de minha mãe, que, quando nos via obcecados por coisas irremediáveis ou causas perdidas, sem discursos rebuscados, nos dava um empurrão para a frente, com uma frase que não era dela, mas que me traz de volta o seu sorriso optimista: Deixa lá: o que não tem remédio remediado está. E conhecia as outras receitas da sabedoria popular e da fé das pessoas simples: De ora a hora Deus melhora. Às vezes, quando nos via pouco interessados pela luta da vida: o dinheiro não vem cá ter pelo buraco das telhas, e... Deus ajuda quem muito madruga...
Depois penso na luta ascética: a dos meus pais, antes da que apendi na vida dos santos. Não os santos milagreiros, das hagiografias tradicionais, mas os santos de carne e osso que semeiam a paz à sua volta e arriscam tudo pelos valores nos quais, bem lá no fundo, até os que os perseguem acreditam.
E voltei aos milhões de livros vendidos nestes últimos anos, movimentando centenas de milhões de dólares, porque na nossa cultura ocidental se perderam as luzes que iluminaram os seus criadores.
E como sempre há quem se aproveite da ignorância dos outros, aí estão os livros que toda a gente compra: uns porque buscam soluções mágicas para os seus problemas, outros porque procuram novidades surpreendentes, outros porque tomam isso como sinal de modernidade.
Também se dizia, quando eu era miúdo, que em terra de cegos, quem tem olho é rei.
Estamos bem no tempo áureo dos zarolhos.

Saturday, August 11, 2007

A MORTE DO CARDEAL


Aprendi a admirá-lo desde o início do seu ministério episcopal, primeiro em Orleães, mas sobretudo após a sua nomeação para arcebispo de Paris.
Numa hora difícil, quando a hieraraquia católica da Europa ocidental parecia paralisada por questões que, apesar de secundárias, se consideradas em si mesmas, fechavam a muitos bispos os horizontes de uma acção corajosa que fosse também testemunho de fé no futuro da Igreja.
Na altura não me apercebi, porque de facto isso não era importante, das raízes hebraicas do novo arcebispo; e confesso que duvido do entusiamo com que um certo judaismo apareceu agora protagonizando gestos que esconderam mal o sionismo, do qual, em meu entender, dependiam em excesso.
O sionismo, que não perdoou a João Paulo II a canonização de Edith Stein... talvez por ela ter tanta semelhança com outro judeu apaixonado por Jesus Cristo, que era igualmente judeu.
E também, a minha admiração pelo cardeal, que foi sempre crescendo, quase até à sua resignação, tinha pouco a ver com aquilo que agora, quando a sua morte se revelou notícia de bom consumo, as agências noticiosas internacionais puseram em evidência.
Daí este terrível sentimento de frustração que me assalta ao ver que, mais uma vez, os “media” ditos cristãos, na sua grande maioria, tenham deixado passar uma preciosíssima oportunidade para marcarem a diferença, pondo em realce o que fez deste homem um grande bispo, um dos maiores, se não o maior, da França do final do século.
Agradeço ao bispo português que falou da ousadia do cardeal agora defunto: Só foi pena não ter especificado essa ousadia.
Porque teria certamente de mencionar o gesto corajoso que está na raiz da quantidade de sacerdotes ordenados para a diocese de Paris – com 2% da população francesa - durante os quase vinte e quatro anos de episcopado de Jean-Marie Lustiger: 200 acerdotes, o equivalente a 15% de todo o clero da França.

Monday, August 06, 2007

MEMÓRIA E IDENTIDADE



Seis de Agosto.
O calendário litúrgico assinala: Festa da Transfiguração do Senhor.
E diz ainda o mesmo calendário que as igrejas cujo titular é o Santíssimo Salvador – como acontece com a basílica de São João de Latrão (Sé de Roma, a “Mãe de todas as Igrejas”) – celebram neste dia o seu titular.
Santíssimo Salvador!
Desde garoto, quando entrava na igreja paroquial, logo os meus olhos se fixavam no tecto, cujo estuque, que reproduzia figuras do catecismo da “Maison de bonne presse”, cenas da vida de Cristo rodeando o quadro central, que figurava precisamente a Transfiguração.
Mais tarde soube que a obra desse tecto, como a disposição das tábuas policromadas do soalho, tinha sido imaginada e dirigida pelo Padre Jacinto António Lopes, já completamente cego, por efeito da doença que o atacara quase no início da sua carreira sacerdotal, mas com o fulgor do espírito e do zelo com que se encarregara da paróquia por nomeação régia, fez agora cemm anos.
Já aqui falei do injusto esquecimento a que foi votado este centenário. Não sei se vale a pena voltar ao tema. Como, porém, uma das funções deste blogue é dar-me um espaço para desabafar, deixo-me vencer pela tentação de abrir um pouco a janela da alma, a ver se a luz do exterior diminui as sombras do choque das memórias do passado com as imagens do presente.
E não se pense que o que do presente me atormenta é o facto de ser diferente; mas o pouco e nada ter a ver com o passado; à sua falta de coerência específica, ao apagamento de tudo o que podia ensinar as pessoas a perceber a correcção do caminho, que não se define só pelo destino: mas em coerência com a origem.
Todos sabemos que os grupos humanos, quaisquer que eles sejam, têm necessidade absoluta da memória para salvarem a sua identidade.

Wednesday, August 01, 2007

LEMBRANÇAS DE SIÃO






Um pouco de Camões

Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a desengana;

Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;

Cá neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Camões, que, como outras grandes figuras da nossa história, é, em muitos aspectos, vítima do seu próprio génio, merece leituras mais abrangentes que aquelas que habitualmente se fazem. De facto, a vastidão da sua cultura e a profundidade do seu pensamento são frequentemente esquecidas devido ao fascínio do seu génio poético. O problema está em que não faz uma boa análise do artista quem se sequece da cultura e do pensamento que não só enriquecem a arte, mas, na maior parte dos casos, a inspiram e lhe dão alma.
Este soneto, por exemplo, como as redondilhas “Sôbolos rios que vão”, inspira-se no Salmo 136 (137), largamente comentado e parafraseado ao longo de todo o século XVI. Salmo que é responsável pelo alastramento a toda a literatura ocidental do tópico Babel e Sião, contrapondo-se; tópico que mergulha directamente no exílio das grandes famílias de Jerusalém, após a conquista da Assíria, em 587 a.C., mas no qual o povo hebreu sintetiza as experiências dolorosas por que passou, ao longo dos séculos, o seu afã de fidelidade ao Deus da Aliança.
Da leitura religiosa dos acontecimentos históricos ao discurso dos místicos a respeito da sua luta ascética, vai um passo. E esse também o nosso épico o deu, com a profundidade e o génio com que deu todos os outros.
Poeta, teólogo, filósofo e analista político, com uma grandeza única, tudo isso foi Camões; e.na medida em que o lermos tendo isso em conta, a cada passo o encontramos a falar da nossa época, a dar voz aos nosso anseios e aos protestos que abafamos por não sabermos como veiculá-los de forma útil.
Anseios e protestos: como podemos descobrir neste soneto, que aceita perfeitamente uma leitura política, como tantos outros poemas, de que talvez venhamos a falar neste cantinho.
Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza...
Valha-me Deus, que isto até parece referir-se ao Portugal do início do teceiro milénio!