resistencia

Friday, April 21, 2006

APESAR DOS PESARES



Ao meu caríssimo amigo David Nogueira, dedico esta página do meu diário, escrita uma tarde destas, como lembrança de um combate entre o desânimo e o conforto… combate de que fui arrancado pela lembrança dos amigos.

"A meio da tarde, enquanto, trazida pelas ondas hertzianas, me chega aos ouvidos a voz de ouro de Catherine Ferrier cantando a belíssima ária da Paixão Segundo São Mateus (Pedro chora a sua traição):
Have mercy Lord,
My God, because of this my weeping!
Look thou here,
Heart and eyes now weep for thee
Bitterly.


Pena que cante em inglês!
Apesar de aparentemente menos doce, o alemão, como me habituei a ouvi-lo, no contexto de toda a obra, parece-me tanto mais expressivo!...
Erbarme dich,
Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Schaue hier,
Herz und Auge weint vor dir
Bitterlich.

Seja como for, sinto-me envolvido por esta música, sobretudo pela força espiritual que jorra das palavras e da música postas por Bach na boca do discípulo traidor.
O discípulo traidor?
Geralmente, quando se ouve falar do discípulo traidor, pensa-se imediatamente em Judas. E é pena:
Pena, porque a traição de Judas não foi maior que a de Simão:
Pena sobretudo porque isso desvia o pensamento do que está no âmago da mensagem transmitida pelos relatos canónicos da Paixão: Tudo é dominado pelo amor… tanto amor, que até quando se atraiçoa, só o orgulho, a incapacidade de se deixar envolver pela lógica do amor, faz com que as coisas terminam em tragédia.
Simão Pedro, que traiu o Mestre e os companheiros, no momento em que todos precisavam mais da sua coragem, reencontra um e outros, porque a sua loucura por Cristo era também a raiz da amizade que o unia a eles.
A amizade!
Talvez nós, à força de insistirmos na caridade como essência do cristianismo, tenhamos perdido o sentido da amizade, daquilo precisamente que torna humanas as nossas relações e sem o qual a caridade, mesmo se autêntica, terá o seu quê de postiço, de árvore desenraizada, prestes a tombar irremediavelmente à primeira rajada de vento.
Erbarme dich, Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Não sei porquê, mas não consigo imaginar um discípulo a chorar assim, fora do contexto de uma grande amizade entre ele e os condiscípulos.
Sem essa amizade… acontece o desespero de Judas.