resistencia

Tuesday, June 17, 2008

A VINHA DE NABOT


Aos leitores deste blogue, ofereço mais um página do meu diário:
Tempo chuvoso. Dizem os meteorologistas que não durará muito, mas à hora em que me debruço sobre a janela para contemplar a piasagem do vale, há humidade no ar e nuvens carregadas no céu. Um céu triste, a condizer com as marcas do horizonte em que se projectam as lembranças do meu domingo.
Martelam-me os ouvidos os discursos políticos e as notícias desencorajantes que chegam de todos os lados.
Também se fala de uma lei anti-corrupção... mais uma jogada no faz de conta, para enganar os incautos.
E não posso evitar o regresso dos pensamentos que me despertou o trecho do livro dos Reis, lido na Eucaristia desta manhã.

Nabot de Jezrael tinha uma vinha junto ao palácio de Acab, rei da Samaria. Disse então Acab a Nabot: «Cede-me a tua vinha para que eu a transforme em horta, pois fica junto da minha casa. Dar-te-ei em troca uma vinha melhor; ou, se te convier, pagar-te-ei o seu valor em dinheiro.» Nabot disse a Acab: «Pelo Senhor! Seria um sacrilégio ceder-te a herança de meus pais!» Acab voltou para casa triste e irritado, pelo facto de Nabot lhe ter dito: «Não te darei a herança de meus pais.» Deitou-se na cama, voltou o rosto para a parede e não quis mais comer. Sua esposa veio ter com ele e perguntou-lhe: «Por que razão estás assim irritado e não queres comer?» Ele respondeu-lhe: «Porque falei a Nabot de Jezrael, dizendo-lhe: ‘Cede-me a tua vinha por dinheiro ou, se mais te convier, dar-te-ei por ela outra vinha’, e ele respondeu-me: ‘Não te darei a minha vinha.’ Então Jezabel, sua esposa, disse-lhe: «Não és tu o rei de Israel? Levanta-te, come, não te aflijas! Eu mesma te darei a vinha de Nabot de Jezrael.» Escreveu cartas em nome de Acab, selando-as com o selo real, e enviou-as aos anciãos e aos magistrados da cidade, concidadãos de Nabot. Nelas lhes dizia: «Proclamai um jejum e fazei sentar Nabot na primeira fila da assembleia. Fazei vir à sua presença dois homens malvados que o acusem dizendo: ‘Tu blasfemaste contra Deus e contra o rei!’ Levai-o, depois, para fora da cidade e apedrejai-o até ele morrer.» Os homens da cidade, os anciãos e os magistrados, concidadãos de Nabot, fizeram o que lhes mandara Jezabel, conforme o conteúdo da carta que ela lhes enviara. Proclamaram um jejum e fizeram Nabot sentar-se em lugar de honra. Vieram então os dois malvados, puseram-se na presença de Nabot e depuseram contra ele perante o povo, dizendo: «Nabot blasfemou contra Deus e contra o rei!» Fizeram-no sair da cidade, apedrejaram-no e ele morreu. Mandaram então dizer a Jezabel: «Nabot foi apedrejado e morreu.» Quando Jezabel teve conhecimento que Nabot fora apedrejado e já estava morto, disse a Acab: «Levanta-te e toma posse da vinha que Nabot de Jezrael recusara ceder-te por dinheiro; Nabot já não é vivo! Morreu!» Mal Acab ouviu dizer que Nabot tinha morrido, levantou-se logo para descer até à vinha de Nabot de Jezrael, a fim de tomar posse dela (1Reis: 21, 1-16).

Para mim, que não sou especialista, mas apenas um leitor crente, é flagrante, a semelhança entre este episódio e muito do que se passa nas nossas sociedades, sempre que o poder entra como ingrediente de resolução nas relações humanas.
Nabot defende a sua vinha apelando para valores de que o rei era suposto defensor. E terá sido por ele ter apelado para esses valores que deixou Acab tão mal disposto.
Mas a ironia da história, aqui verdadeiarmente trágica, é assim: será precisamente a partir de tais valores, inseridos num quadro de ambições a descoberto de qualquer referência ética, que Nabot vai perder a vida e a vinha.
A diferença hoje está em que a novidade cristã nos não permite desejar a vingança que a mesma história, como instrumento da justiça divina, vai realizar sobre os protagonistas do episódio bíblico.

Thursday, June 05, 2008

OITO ANOS ATRÁS


Ao invés das origens

Aqui vai mais uma página, esta muito recente, do meu diário.
Ofereço-a a todos os que há oito anos estiveram comigo na realização daquele sonho espantoso que foram as Jornadas Culturais 2000-2001.
Penso especialmente nas andanças provocadas pela ideia louca de lavar à cena O Processo de Jesus...
Aqui vai a página:
Arranquei o álbum do canto onde o guardava há muitos meses, talvez há anos.
Nanna Mouskouri faz-me sempre lembrar aquelas férias do Natal passadas nos arredores de Paris, vai para quarenta e oito anos: eu não tinha nada que fazer e via televisão, que era ainda a preto e branco e, mesmo na França, tinha só um canal.
Do que Nanna Mouskouri cantou então, e foi tudo particularmente fascinante, ficou-me apenas um título: L’Enfant au Tambour.
Depois houve outros concertos, outras audições... e hoje escuto enquanto vou subindo a serra, céu nublado, promessas de chuva, que, no, entanto, não cai.
E a voz de prata da cantora grega afasta-me para longe, no tempo e no espaço... tanto quanto o permite a estrada solitária, agora já no cimo da serra, com todos os perigos que encerram as pequenas estradas do interior, onde as pessoas imaginam que não há mais niguém no seu caminho.
L’Etranger, apesar de ser uma das primeiras canções do álbum, vem-me a cada momento à memória: Il est arrivé à l’hure où le soleil rougit... mais feminina, no conteúdo e no encanto da voz que a executa, que a congénere portuguesa, que me pareceu, a primeira vez que a ouvi na toada masculina das baladas combrãs, demasiado brejeira.
Depois vêm-me à mente outros problemas: como, por exemplo, o facto de a arte, ao invés do que aconteceu no início da evangelização da Europa, como que esvaziar a cultura da riqueza que lhe trouxe o Evangelho: diríamos que já não se inculura o Evangelho, mas, ao contrário, se desevangeliza a cultura.
Nem sempre, claro.
E o pensamento foge-me para a tal encenação de O Processo de Jesus:
Desejaria não acordar mais daquela tarde, no teatro José Lúcio da Silva, onde me foram proporcionadas as melhores interpretações que jamais vi dos personagens de Diego Fabri.
Foram todas de primeira categoria; mas permito-me salientar a prestação da Elsa – que será feito dela?-, já que o seu personagem tem muito a ver com o poema cantado por Nanna Moukouri.
Transcrevo do porgrama dessa tarde:
Dois mil anos depois, Jesus de Nazaré continua a ser um mistério que resiste aos discursos lógicos mais subtis e às emoções fáceis, de circunstância.
Só os pobres, os simples, os pecadores, aqueles que fazem a experiência da perda de todas as seguranças terrenas, só esses penetram nesse mistério.
Ao terminar a peça, ficamos com a impressão de que Diego Fabri nos quis dizer apenas que Jesus Cristo não se discute, aceita-se: como Pedro, João, e Tomé; como a Madalena, como a Ruiva, como a velhinha que, além de viúva, era pobre.