Wednesday, August 01, 2007

LEMBRANÇAS DE SIÃO






Um pouco de Camões

Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a desengana;

Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;

Cá neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Camões, que, como outras grandes figuras da nossa história, é, em muitos aspectos, vítima do seu próprio génio, merece leituras mais abrangentes que aquelas que habitualmente se fazem. De facto, a vastidão da sua cultura e a profundidade do seu pensamento são frequentemente esquecidas devido ao fascínio do seu génio poético. O problema está em que não faz uma boa análise do artista quem se sequece da cultura e do pensamento que não só enriquecem a arte, mas, na maior parte dos casos, a inspiram e lhe dão alma.
Este soneto, por exemplo, como as redondilhas “Sôbolos rios que vão”, inspira-se no Salmo 136 (137), largamente comentado e parafraseado ao longo de todo o século XVI. Salmo que é responsável pelo alastramento a toda a literatura ocidental do tópico Babel e Sião, contrapondo-se; tópico que mergulha directamente no exílio das grandes famílias de Jerusalém, após a conquista da Assíria, em 587 a.C., mas no qual o povo hebreu sintetiza as experiências dolorosas por que passou, ao longo dos séculos, o seu afã de fidelidade ao Deus da Aliança.
Da leitura religiosa dos acontecimentos históricos ao discurso dos místicos a respeito da sua luta ascética, vai um passo. E esse também o nosso épico o deu, com a profundidade e o génio com que deu todos os outros.
Poeta, teólogo, filósofo e analista político, com uma grandeza única, tudo isso foi Camões; e.na medida em que o lermos tendo isso em conta, a cada passo o encontramos a falar da nossa época, a dar voz aos nosso anseios e aos protestos que abafamos por não sabermos como veiculá-los de forma útil.
Anseios e protestos: como podemos descobrir neste soneto, que aceita perfeitamente uma leitura política, como tantos outros poemas, de que talvez venhamos a falar neste cantinho.
Cá, neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza...
Valha-me Deus, que isto até parece referir-se ao Portugal do início do teceiro milénio!


0 Comments:

Post a Comment

<< Home