Monday, January 07, 2008

O LADO BOM DA QUESTÃO



Mais uma vez... Quantas não foram já, desde aquele quentíssimo Julho de 1995, quando Roma guardava ainda as vestes de que se adornara para celebrar o quarto centenário da morte daquele florentino romanizado que devia passar à história como “o santo do bom humor”!
Mais uma vez subo os cento e cinco degraus da escadaria renascentista que dá acesso à sala de leitura da Biblioteca Vallicelliana.
Levo comigo uma suspeita, nascida na sexta-feira passada, de que alguém anda em demanda daquele manuscrito: o que isto traz consigo para o meu plano de trabalho, já tão carcomido por todo o tipo de incidentes, faz com que os horizontes do espírito se me tornem ainda mais sombrios do que o ar com que Roma despertou esta manhã.
Depois, a pouco e pouco, os temores vão-se confirmando: na sala de leitura, alguém se sentou onde eu costumo trabalhar, por haver perto uma tomada de corrente eléctrica... da qual não tem necessidade a pessoa em questão; o que me irrita ainda mais.
Encontro outra relativamente perto, preparo os apetrechos, peço o texto que deixei reservado da última vez, e, concentrado nas minhas inquietações, abarco de novo com o olhar o mundo que me rodeia, quando me dou conta de que os funcionários estão a braços com um problema que não sabem como resolver: afinal há dois candidatos. Eu e a pessoa ao meu lado, por sinal, dou-me agora conta disso, muito jovem. E os funcionários querem que sejamos nós a resolver o problema; cresce a minha irritação: mas não foi o manuscrito reservado por mim?
Chegamos a acordo rapidamente, porque tenho dois poderosos argumentos a meu favor: reserva feita e... me despiace, signorina: io vengo da si lontano!
Eh va bene! Facia lei!
Mergulho nos meandros complicados da caligrafia do nosso humanista, lançando de vez quando um olhar curioso sobre os velhíssimos volumes que a minha jovem companheira de mesa e concorrente na leitura de Aquiles Estaço, foi transportando para a sua frente.

Chego ao fim: procuro garantir a posse do manuscrito nos próximos dias, junto do funcionário que entretanto ocupou o lugar da vigilância – tenho deste funcionário gratíssimas recordações – e com uma conversa rápida de bons entendedores, com a jovem estudiosa de livros antigos.
Quando começo a descida da escadaria, já no terceiro lanço, deixando para trás a estátua de Alexandre VII, sinto de repente uma alegria estranha: nem sequer me incomoda perceber que o céu de Roma está ainda mais carregado, que provavelmente vou ter de abrir o guarda-chuva na espera do autocarro.
Ora, ainda bem!
Aquiles Estaço, o hnumanista português mais conhecido, nos séculos XVI e XVII, nos ambientes da edição e estudo das obras da Antiguidade clássica e patrística, pode não ter em Portugal quem se lembre dele. Mas eu, que alguns consideram um dinossauro dos estudos humanísticos, encontro uma jovem estudante dos arredores de Roma, que procura, na biblioteca por ele fundada, o mais precioso dos seus mansucritos.
É ou não é o lado bom de uma péssima questão?

7 Comments:

Blogger Joana Marques said...

Os lugares-comuns encerram verdades intemporais como essa: todas as questões, por mais negras que se apresentem têm o seu lado bom! E atrevo-me a acreditar que haverá mais jovens em Portugal à espera que esta figura histórica lhes seja apresentado por um Professor com P grande!E quem sabe não disputarão consigo o mesmo manuscrito, como ontem aconteceu?

Beijinhos e bom trabalho!

12:07 PM  
Anonymous Anonymous said...

E já agora daqui falaa Joana Marques!

12:42 PM  
Blogger Augusto Ascenso Pascoal said...

Querida Joana. É bom de ver que a minha melhor semana de Roma foi a última do ano. Pois, quanto a trabalho, as coisas continuam emperradas. De vez em quando tenho destes mimos: Antes de fechar definitivamente, por hoje, o computador,abri a caixa do correio - que me diz sempre o que se passa com "resistênciâ" - e dou-me com o comentário de Ocean... fizeste bem em traduzir, pelo sim e pelo não. Também fico a saber que o exagero daquele P grande é ditado pela amizade. Obrigado, querida Joana. Também te desejo bom trabalho... e que não desanimes com as dificuldades iniciais, que são inevitáveis quando se começa a sério; mas são também um estímulo.
Saudades e beijos de Roma.
AP

2:17 PM  
Anonymous Anonymous said...

E para além desse contratempo...engraçado...tudo vai correndo pelo melhor??Espero que sim...

7:14 AM  
Blogger Augusto Ascenso Pascoal said...

Tudo, ou quase tudo, pelo melhor. Hoje apareceu mais uma concorrente... uma concorrente, note-se, ao tal manuscrito. São boas surpresas, quando estou a terminar o meu soggiorno... o soggiorno, porque o trabalho, esse, mal começou.
Creio que Aquiles Estaço se alegraria com isto... como eu, aliás. Só gostaria de conhecer o professor que se lembrou de pôr esta juventude na pista do grande português - ele assinava-se, em latim: Achilles Statius Lusitanus - esquecido pelos seus compatriotas.
Beijinhos
AP

8:03 AM  
Anonymous Anonymous said...

Anda em grande ..esse Aquiles Lusitanus..por terras de Roma..estou a ver!!..Ainda vai para o Top 10 dos mais Lidos esse tal manuscrito!!
Beijinhos G

3:46 AM  
Blogger Augusto Ascenso Pascoal said...

Tanto não direi, porque entrar nele não é nada fácil. Mas merecia que alguém se interessasse por tornar o seu conteúdo acessível aos que querem e não são capazes... já que as nosas escolas não dão meios para isso.
Por mim, agora, já só noutra encarnação... arreda!
Vale! (quer dizer ciao, em latim)

4:18 AM  

Post a Comment

<< Home