Wednesday, December 07, 2005

NASCER E TORNAR-SE

Este texto é especialmente dedicado ao Zé, que nos seus estudos de catequética, tem aprendido coisas muito interessantes, mas está a guardar tudo para depois… Como no seu último comentário às minhas reflexões sobre o episódio – o quadro, como ele lhe chama – da samaritana, citou um dos escritores eclesiásticos – tecnicamente não se pode incluir entre os Santos Padres – que muito admiro e cuja sorte me causa uma certa pena, lembrei-me de ir buscar o contexto da frase referida e acrescentar alguns pensamentos pessoais; digo acrescentar, não completar, nem muito menos corrigir… por razões óbvias.

Estamos no Apologético, capítulo XVIII, 1-4.

O fogoso advogado da África romana, que neste capítulo usa também outra expressão muito célebre – o testimonium animae naturaliter christianae! – imagina que os seus leitores pagãos mais cultos ridicularizam os artigos de fé dos cristãos; por isso, depois de comparar as virtudes cívicas de uns e de outros, e de contrapor às crenças dos pagãos a fé dos cristãos, acrescenta:

Haec [dogmata christiana] et nos risimus aliquando. De vestris sumus. Fiunt non nascuntur cristiani.

(Uma tradução brasileira de que não gosto)
Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de riso. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens tornam-se, não nascem cristãos!

A quem percebe italiano, ofereço uma tradução que me parece melhor.
Anch'io ho riso un tempo di ciò. Provengo dai vostri. Cristiani si diventa, non si nasce.

Com a sua linguagem incisiva, aprendida na prática forense, Tertuliano faz uma afirmação que é ainda mais importante para os cristãos do que para os pagãos, a quem se dirige neste livro. E, como acontece com outras frases lapidares, da Sagrada Escritura e da Tradição, a profundidade do seu conteúdo perde-se quando a citamos como um lugar comum.
Que não se nasce cristão… bem o sabe a Igreja, que nunca celebra um mistério da fé sem fazer dessa celebração uma catequese, que pode ir da multiplicação das leituras e respectivo comentário, com cânticos e intervenções explicativas, como acontece na celebração da Eucaristia, até à curtíssima frase bíblica que o sacerdote pronuncia quando recebe ou despede o penitente na celebração individual do sacramento da Reconciliação. E os outros tipos de catequese, para os diferentes níveis etários, destinam-se primordialmente a ajudar a crescer na fé; a tornar-se cristão.
Fico à espera do comentário do nosso estudante romano… Pessoalmente, estou convencido de que grande parte das dificuldades com que, neste campo, lutam os pastores, provêm do esquecimento deste objectivo primordial.
Mas o que agrava tudo é que os cristãos, sacerdotes e leigos, na sua grande maioria, se esqueceram de que se ninguém nasce cristão, temos de estar permanentemente a construir a nossa identidade: o baptismo não é um documento de pasta, mas um sacramento pelo qual Deus nos introduz na vida, que exige cuidados permanentes.
Para terminar este arrazoado, que vai já excessivamente longo, diria que a frase de Tertuliano – não nascemos cristãos, tornamo-nos – implica uma dupla atenção: em relação a nós, que não podemos parar, porque o tornar-se cristão supõe uma dinâmica que só termina com o fim da nossa existência histórica (leia-se morte); em relação aos outros, que temos de ser permanentemente dádiva e acolhimento… para que todos em conjunto e cada um individualmente, crentes e não crentes, caminhemos sem cessar para a identificação com a mediada perfeita, que nos é dada pela humanidade de Cristo (cf. Ef 4,13).

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Este Nascimento Tornou-se um parto dificil!
;-)

12:55 PM  
Anonymous Anonymous said...

Mas tenho a certeza que há muita gente a nascer cristão e depois a perderem o caminho quando se querem tornar cristãos, juntando continente ao conteúdo. Sim, é que há aí confusão. Nem sei mesmo se eu não terei nascido cristão antes de me tornar um.

Mas, como o DOUTOR, também vou aguardar que o nosso estudante, quase mestre, romano diga algo

1:05 PM  
Blogger Augusto Ascenso Pascoal said...

Já agora, mesmo continuando a aguardar as tais sábias intervenções, gostaria de dizer ao Migo, que merecia uma recompensa pela fidelidade com que me lê e comenta (mesmo com aquela maldade do parto difícil)... gostaria de lhe dizer que abusar da polissemia das palavras, não vale.
Estamos absolutamenet de acordo, se empregamso o verbo nascer com o significado que lhe dás, e que é legítimo. Nesse sentido, também penso que nasci cristão, antes de me tornar um... e por isso agradeço a Deus a família que me deu como berço.Mas mesmo assim, continua válida a afirmação de Tertuliano: porque, de facto,se não procuro tornar-me cada dia um pouco mais cristão, acabará morrendo aquilo em que nasci tal.
Além disso, meu caro Migo, se desenvolvi as sugestões da frase do Aplogético, foi porque me pareceu encontrar aí algo de interessante para o nosso projecto pastoral. Ou estarei enganado?

4:57 PM  
Blogger Zé Henrique said...

Até me ficava mal não dizer nada... :-)
De facto, toda a vida da/em Igreja não é senão um caminho constante para a realização deste tornar-se em cada dia aquilo que já se é pelo baptismo. E entre o «já» e o «ainda não» da nossa história, a catequese, nas suas mais variadas formas (e sem entrar aqui em distinções do que é ou não catequese, mas compreendendo-a neste sentido mais global de todo o serviço à Palavra de Deus...) é sempre um espaço de encontro connosco próprios e com Deus (nesse caminho de dupla fidelidade ao Homem e a Deus), e é nessa relação que podemos ir maturando progressivamente o nosso ser e o nosso crer... Por isso a citação de Tertuliano, não situada num momento apenas, mas no permanente evoluir da história pessoal, concreta, contextualizada, situada...

10:28 AM  

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