DO CALVÁRIO PARA O PRESÉPIO


Tenebrae factae sunt, dum crucifixissent Jesum Judaei; et circa horam nonam exclamavit Jesus, voce magna: «Deus meus, ut quid me derelequisti?». Et inclinato capite, emisit spiritum. Exclamans Jesus voce magna, ait «Pater, in manus tuas commendo spiritum meum». Et inclinato capite…
Fez-se noite, quando os Judeus crucificaram Jesus ; e, por volta da hora nona, Jesus exclamou em alta voz: «Meu Deus, porque me abandonaste?». E, inclinando a cabeça, expirou.
Exclamando em alta voz, diz, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito». E, inclinando a cabeça….
É a parte final da Passione secondo Giovanni, de Francesco Corteccia. Executa a Schola Cantorum “Francesco Coradini”, dirigida por Fosco Corti.
Nas vésperas do Natal, tenho a grata surpresa de encontrar uma jóia de arte – como pude deixar tão longamente este CD, silencioso, no fundo da gaveta, entre os objectos sem direito a especial interesse? – uma joia que me reconcilia com a quadra que estamos vivendo.
Devo a Corteccia e aos que interpretam a sua música o encanto que me ajuda a perceber como no mistério de Cristo tudo se harmoniza, se cruza e se entrelaça: a serenidade que esta música introduz no Calvário, ilustrando o amor sem limites daquele “inclinato capite”, atira comigo para o carinho e a ternura do Presépio:
Cristo suspenso da cruz e o Menino dormindo no regaço da mãe, são duas faces do mesmo amor sem limites, da mesma loucura de um Deus que permanentemente se excede no dar-se aos homens.
Os homens, que, assim como nesta quadra O trocam pelas alegrias efémeras do consumismo reinante, na Páscoa Lhe voltam as costas em direcção às estâncias de prazer fácil.
E Ele, que, na sua bondade infinita, continua a oferecer a todos o mesmo perdão: parece-me mais encantador o sorriso do Menino do Presépio, porque ele me recorda a prece da cruz: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem.
Assim, já não encontro sentido nas recriminações que me vêm teimosamente ao espírito, perante os natais que se celebram por aí: se são errados, e estou em crer que o são, em muitos casos, o Presépio projectado na Cruz, ou esta como reflexo daquele, obrigam-me a transformar as recriminações em apelos, a revolta interior em exercícios de tolerância.
Tolerância, que, assim enquadrada, está muito longe de ser um comodista deixa correr.