APESAR DOS PESARES
Ao meu caríssimo amigo David Nogueira, dedico esta página do meu diário, escrita uma tarde destas, como lembrança de um combate entre o desânimo e o conforto… combate de que fui arrancado pela lembrança dos amigos.
"A meio da tarde, enquanto, trazida pelas ondas hertzianas, me chega aos ouvidos a voz de ouro de Catherine Ferrier cantando a belíssima ária da Paixão Segundo São Mateus (Pedro chora a sua traição):
Have mercy Lord,
My God, because of this my weeping!
Look thou here,
Heart and eyes now weep for thee
Bitterly.
Pena que cante em inglês!
Apesar de aparentemente menos doce, o alemão, como me habituei a ouvi-lo, no contexto de toda a obra, parece-me tanto mais expressivo!...
Erbarme dich,
Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Schaue hier,
Herz und Auge weint vor dir
Bitterlich.
Seja como for, sinto-me envolvido por esta música, sobretudo pela força espiritual que jorra das palavras e da música postas por Bach na boca do discípulo traidor.
O discípulo traidor?
Geralmente, quando se ouve falar do discípulo traidor, pensa-se imediatamente em Judas. E é pena:
Pena, porque a traição de Judas não foi maior que a de Simão:
Pena sobretudo porque isso desvia o pensamento do que está no âmago da mensagem transmitida pelos relatos canónicos da Paixão: Tudo é dominado pelo amor… tanto amor, que até quando se atraiçoa, só o orgulho, a incapacidade de se deixar envolver pela lógica do amor, faz com que as coisas terminam em tragédia.
Simão Pedro, que traiu o Mestre e os companheiros, no momento em que todos precisavam mais da sua coragem, reencontra um e outros, porque a sua loucura por Cristo era também a raiz da amizade que o unia a eles.
A amizade!
Talvez nós, à força de insistirmos na caridade como essência do cristianismo, tenhamos perdido o sentido da amizade, daquilo precisamente que torna humanas as nossas relações e sem o qual a caridade, mesmo se autêntica, terá o seu quê de postiço, de árvore desenraizada, prestes a tombar irremediavelmente à primeira rajada de vento.
Erbarme dich, Mein Gott, um meiner Zähren willen!
Não sei porquê, mas não consigo imaginar um discípulo a chorar assim, fora do contexto de uma grande amizade entre ele e os condiscípulos.
Sem essa amizade… acontece o desespero de Judas.
11 Comments:
Só para enviar um abraço amigo, sem caridade nenhuma!!!
Será por isso que me irritam tanto as pessoas que, em nome dum um «ser cristão», se desfazem numa simpatia desmedida, que parece sempre tão artificial, e que não chega a dar espaço para se revelar quem se é de verdade, logo como pouco espaço para uma amizade...?
Obrigado pela dedicatória. Fico a pensar nos discípulos, e na amizade. Caridade? Amizade? estará a diferença entre o dar e o dar-se?
Tchauê!
Confesso que andava um pouco amuado pela falta de comentários.
De repente aparecem três... que me deixam lisongeado, porque trazem o perfume da juventude... É reconfortante. E, agradecido, junto o meu comentário, com muita amizade pelos três:
Pois eu não sei bem distinguir a amizade da caridade, já que não imagino esta sem aquela, pelo menos como meta. O que se passa é que, como acontece com a caridade, também se chama muitas vezes amizade ao que, no meu entender, não o é.
Quanto ao dar e ao dar-se, meu caro David, acho que servem para distinguir outra coisa, mas não amizade e caridade... porque qualquer delas, se é autêntica, inclui o dar-se.
Para quem estudou Teologia, não seria difícil partir para uma discussão especulativa que utilizaria termos como "objecto formal" e "objecto material" das virtudes teologais... Mas o nosso tempo é demasiado precioso; vamos poupá-lo. Pessoalmente acho que, sem o dizer expressamente, Bento XVI nos dá uma pista que precisa de ser explorada noutros contextos: para quem acredita na Encarnação, o humamno é condição indispensável do divino.
O problema da caridade ..de hoje ..é que muitas vezes está associada à caridadezinha..por piedade..e nessa linha a amizade é mais bem vista !!Agora no que toca à verdadeira caridade..penso que vai mais longe do que a amizade..porque pretende ser independente da amizade!!..ou será que não ??!!
O problema da caridade ..de hoje ..é que muitas vezes está associada à caridadezinha..por piedade..e nessa linha a amizade é mais bem vista !!Agora no que toca à verdadeira caridade..penso que vai mais longe do que a amizade..porque pretende ser independente da amizade!!..ou será que não ??!!
Releio os comentários dos amigos que fizeram o favor de me ler e não resisto à tentação de escrever mais umas linhas; gostaria que servissem para explicar melhor o que digo; mas já fico contente se o não complicarem ainda mais.
Estamos a braços com três conceitos fundamentais da nossa cultura ocidental - Europeia, no sentido mais amplo do termo - quando se procura analisar a dinãmica das relações humanas.
AMIZADE, AMOR E CARIDADE.
Não vamos meter-nos em altas especulações, sejam de que tipo forem: limitemo-nos a pôr em realce o núcleo essencial do significado das três palavras, procurando ver, ao mesmo tempo, como se relacionam na nossa cultura.
Podíamos começar pelo AMOR, sentimento e conceito dos quais há mais contra-facções. Além de que como sabemos, mesmo sem contra-facções, se utilizar a palavra para designar coisas que nada têm a ver com o que é específico das realções humanas.
E é aqui que, em meu entender, o conceito de amizade pode dar uma ajuda; isto, claro, se não falamos também de contra-facções da amizade.Amor e amizade são evidentemente coisas diferentes:mas permito-me perguntar: que será o amor sem amizade (que é uma forma superior de estima)? E, já agora, outra pergunta: será que duas pessoas que se amam verdadeiramente poderão alguma vez substituir (não quero falar de reduzir) esse amor pela amizade?
E a caridade?
Nada de equívocos: caridade não é um conceito puramente cultural. O que acontece é que, de facto, há muitas realidades culturais que se exprimem por essa palavra.E isso é legítimo, à sombra do princípio da analogia, essencial ao pensamento e à linguagem hamanos.
Prevenidos contra os equívocos gerados por este facto, podemos analisar as relações entre caridade, amor e amizade.
Na sua forma essencial, mais pura, a caridade, como virtude teologal, é a capacidade de amar com o amor do próprio Deus.Por isso se chama teologal.
Mas, não sendo nós deuses,como pode esse amor divino passar pelo nosso coração, sem, pelo menos consequentemente, gerar nele a amizade? E entre os verdadeiros amantes, poderá esse amor divino ser real sem integrar, eu diria assumir - como acontece no mistério da Enacarnação - toda a realidade humana daquela relação?
Por agora deixo só perguntas. Alguém quer avançar com as respostas?
Então, caridade, é a capacidade de amar com o amor do próprio Deus. A amizade é a minha expressão (desse amor) aos outros com os quais crio uma relação que vem dar uma peculiaridade a esse amor e a essa relação tida.
O amor contudo existe mesmo sem haver amizade embora esta pressuponha aquela.
Já agradecíamos uma outra reflexão...
Abraço
PS. Já agora, e como conheço (melhor que ninguém!?) o seu poder de distinção e síntese, será que nos podia oferecer, a todos os leitores e não só a mim, uma distinção ente Vaticano e Santa Sé?
Muito agradecido
Vou responder por estes dias, ainda que seja má altura... (São as festas de São Romão e Guimarota!)Mas podes crer que é por seres tu quem pede.
Um abraço muito apertado.
Pascoal
Desde já, fico agradecido.
E, já agora, espero que as festas de São romão e guimarota tenham corrido pelo melhor. Tive de ficar por Lisboa, não deu para aparecer.
Abraço
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