Tuesday, October 25, 2005

NO DIA SEGUINTE


Tarde cinzenta, de leivas sedentas, olhando o firmamento, onde as nuvens que passam, fugindo de quem as olha com cepticismo, têm às vezes o ar cruel de quem se ri da fome e da sede que poderiam e não querem saciar...
Há uma voz feminina que executa um belo trecho musical, daqueles que aliviam o espírito, não propriamente distraindo-nos da vida, mas ajudando-nos a sublimar as inquietações e as dores que tentam torná-la insuportável.
Tem o seu quê de misterioso - talvez um apelo de muitas gerações traídas (ontem e hoje) - o timbre desta mulher, que parece mais abrir-se em confidências dolorosas do que cantar para deleite dos amantes da boa música.
Ou será o estado do meu mundo interior, com este céu cinzento, que nem sequer sabe prometer, que assim condiciona a minha emoção estética?
De repente, já não é a voz de uma cantora que ouço, mas uma série de gritos... mulheres? crianças? Punhos no ar, esquemas ideológicos, manipulando bons princípios, jogando com verdades indiscutíveis que se põem conscientemente ao serviço da mentira... E aqueles que afirmam estar do lado dos mais fracos recusando-se a dar voz a quem não a tem.
É por isso que não resisto a deixar aqui, na sua língua original, um parágrafo do texto em que uma mulher, uma dos milhares, se não milhões, a que as ideologias referidas não dão voz, uma mulher que conta, com uma serenidade que ainda me faz ter mais vergonha dos silêncios com que tenho pactuado, a sua própria tragédia.
Um parágrafo apenas, dos últimos (os sublinhados são do texto original):

Al abortar rompí con el pasado, de alguna forma me desprendí de él y sin darme cuenta me había lanzado a la incertidumbre que siempre había temido. Todavia a veces tengo miedo a lo desconocido, miedo a no aceptarme c omo mujer, miedo a lso ninos, miedo de las embarazadas, miedo a entablar una relación con un hombre, miedo a vivir mi vida, a no saber cómo hacerlo. El aborto me supuso una liberación de las ataduras con la vida que antes llevaba, pero también fue negarme como mujer. La bondad e sencillez de mis sobrinos y los hijos de mis amigos han hecho que me entregara a ellos sin remordimiento. Creí que nunca podría volver a jugar con los ninos.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

pois... mas nada disso interessa aos que defendem a todo o custo o corpo e a liberdade de escolha daquelas (as outras mulheres) que se encontram no beco quase se saída.
Há uns tempos escrevi isto:

Hoje, pela enésima vez, o “fórum” da TSF foi dedicado ao aborto (ivg). Para variar, chega-se à mesma conclusão: nenhuma. Tudo, porque Jorge Sampaio (que, note-se, anda lá na sua campanha para a prevenção rodoviária, num carro de alta cilindrada a circular em localidades a uma velocidade superior a 100km/h), prefere fazer o referendo para o ano que há-de vir.
Aproveito para deixar aqui a minha declaração de (não) voto, pela razão que passo a explicar de forma bem sucinta.
Esta não é, de todo, a razão mais importante. Mas é a mais pragmática.
Não vale a pena ir votar! Já fui votar uma vez. Esta seria a segunda. E, pelo que vejo, haveria sempre uma terceira e quarta até que a lei a favor da IVG fosse aprovada. Ou seja, aparentemente é um referendo, mas há um lado que estará sempre condenado a ganhar (e o outro a perder, lógico).
Podem argumentar que esta postura é admitir a derrota antecipada para os que se opõem. Não deixando de ser evidente essa derrota, existem outras derrotas que, não sendo evidentes, são bem mais preocupantes. Aliás, acho que nunca poderei encarar como uma derrota a eventualidade do “sim” ganhar. Por um lado, não vamos arcar com o suplício das mulheres que foram “obrigadas” a fazer uma opção limite. Por outro lado, teremos sempre mais margem de manobra para podermos defender a posição dos que optam incondicionalmente pela vida e que não querem condenar pessoas, mas sim atitudes. E além disso, vamos poder assistir à responsabilidade social, resultante da prática do aborto, em criar condições de vida bem melhores já que, de certeza, uma lei pró-IVG irá desmascarar ainda mais os problemas de fundo de uma sociedade que teima em escolher a via facilitista em detrimento da sua própria sanidade.

6:25 AM  
Blogger Augusto Ascenso Pascoal said...

Meu caro moleskine, obrigado pela tua adenda. Penso como tu, ainda que sinta necessidade de explicar melhor esta posição, porque continua a haver quem não entenda esta forma de protestar. Mas posso dizer-te que também eu, há uns meses, quando parecia inevitável o tal referendo, juntamente com as autárquicas, preparei um texto que intitulei, "Por que não vou votar".
Pois realmente estava decidido a fazer uma declaração de (não)voto, como tu.
Agora o que me inquieta é que pouca gente pensa nesse programa de acção que supõe a alternativa sugerida por ti: deixarmos de nos fixar num acto eleitoral que, por muito legal que seja, nunca será lícito, já que a vida humana não se pode referendar, e vir para terreiro promover essa vida,em todos os campos, por todos os meios, conscientes de que a vida é o primeiro e o fundamento de todos os direitos.
Um abraço.

7:45 AM  

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