Friday, March 07, 2008

MEMÓRIA E AGRADECIMENTO


«Em paz me deito e adormeço tranquilo», entoa o coro, quando inicio a subida que leva à porta de saída do cemitério, onde vim acompanhar à sua última morada mais um sacerdote que segui, a certa distância, mas sempre com admiração, quase desde a infância.
É a segunda vez que este cântico faz explodir a minha emoção, tais circunstâncias. E como da primeira, foge-me o pensamento para a injustiça que quase sempre se instala na sepultura dos homens que serviram por servir, sem perderem tempo com jogos de prestígio pessoal.
Quanto ao padre Manuel António Henriques, poderíamos pensar que esta multidão – de facto surpreendente – era garantia de que tal injustiça não se verificaria.
Acontece, porém, que já vivi o suficiente para me não deixar enganar por emoções momentâneas, esperando alguma coisa de quem não garante nada.
E lembro-me do primeiro momento em que se me fixou na memória a figura deste homem, então jovem seminarista, e cujo corpo, tão mal tratado pela doença, acabamos de lançar à terra.
A canção, talvez demasiado sentimental, com uma letra equívoca, como todos os textos que falam de amor, chamava-se «Amor Sublime»: havia um cantor, voz de tenor particularmente aveludada e um violino, que realçava pormenores especiais da melodia... mas havia sobretudo um piano, que abria a sessão, a acompanhava com requintes que não conhecia ainda em tal instrumento e prolongava os seus ecos... de tal modo que fazia esquecer a voz, o violino, as palmas e o resto.
Ficavam-nos as palavras, mas como que aninhando-se nas teclas do piano, cujo dedilhado as atraira para si, plenas de significado e gratidão.
E a verdade é que, se não esqueci esse poema musicado, não foi pelo cantor nem pelo violinista, mas pelo tocador de piano, que depois ouvi mais vezes – a sua paixão era o Danúbio Azul -, mas não tantas como todos desejávamos: durante muitos anos fiquei parado a pensar naquela dificuldade em aparecer, mostrar talentos indiscutíveis.
Depois, o P. Manuel Henriques foi nomeado pároco de Fátima: uma freguesia enorme, em circunstâncias particularmdenet difíceis, com uma igreja em obras e uma população que, além das marcas negativas de acontecimentos recentes, ia sofrer o embate das tranformações provocadas pelo crescimento, também como impacto comercial, do Santuário da Cova da Iria.
E Fátima – falo da paróquia – que não tinha nada, a não ser a força desagregadora de algumas instituições que vinham aninhar-se à sombra do Santuário, cresceu como comunidade religiosa e humana, de forma surpreendente.
Que se esqueça o cavouqueiro desse crescimento é injusto, mas deve-se também ao modo de proceder deste sacerdote, cujo sorriso, quase sempre fugidio, quando me cruazava com ele, ali para os lados da Cova da Iria, parecia incitar-me a um trabalho intenso e silencioso, tanto mais silencioso, quanto intenso.
Era o horror ao protagonismo, que assim me deixa mais claro o porquê da relutância com que cedia aos convites para mostrar as suas qualidades artísticas, como músico, em geral, mas de modo especial como pianista.
Obrigado Padre Henriques, pela força e o conforto das tuas lições!

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