Friday, March 17, 2006

À SOMBRA DO CASTELO I


Depois saíram todos juntos, como já não acontecia há mais de seis meses, e apanharam um eléctrico que os levasse até ao campo, já fora da cidade. Não havia outros passageiros no compartimento em que se sentaram, o qual estava quente e brilhante de sol.
Recostados, com ar despreocupado, nos seus assentos, começaram a falar do futuro. Reflectindo bem, chegaram à conclusão de que, afinal de contas, as coisas não tinham sido tão más como poderiam ter sido, pois – coisa que até então lhes passara despercebida – os três haviam encontrado ocupações realmente interessantes, as quais poderiam ser, no futuro, ainda mais promissoras. Decidiram tomar, o mais cedo possível, uma providência que lhes parecia da máxima importância: Deviam mudar-se da casa que ocupavam naquele momento. Alugariam uma outra mais pequena, mais barata, porém mais prática e, o que era mais, num bairro melhor do que aquele em que estavam a morar, e que fora escolhida por Gregor.
Enquanto assim conversavam e olhavam para a filha, cada vez mais vivaz, Herr e Frau Samsa aperceberam-se ao mesmo tempo que ela ultimamente, e apesar de todos os tormentos que lhe haviam roubado a cor das faces, florira numa rapariga bonita e torneada.
Cada vez mais em silêncio e comunicando inconscientemente através de olhares, pensaram ambos que era já tempo de começar a procurar-lhe um bom marido.
E foi como uma confirmação dos seus novos sonhos e boas intenções que no final da viagem viram a filha levantar-se em primeiro lugar e distender diante deles o seu corpo jovem.


E assim termina o conto. Fecho o livro e fico a pensar, não propriamente na cena, mas naquele exame de Teoria da Literatura – há que anos isso foi! – em que o professor (um homem de meia idade que viria a morrer, de morte súbita, dois anos depois, numa das zonas mais agitadas da baixa lisboeta, talvez por supor que eu devia ter mais conhecimentos bíblicos do que os outros), foi conduzindo as minhas reflexões até classificar todo o conto como uma parábola.
A parábola da solidão do homem moderno, intuída de modo profético por Kafka, judeu boémio, de língua e cultura alemã… que excelente mistura!
Este final é como que a chave de leitura de todo o conto: Os protagonistas, uma família cujo filho mais velho acorda certa manhã com o corpo transformado num insecto gigante… talvez uma barata. E os meses que se seguem, até à morte de Gregor, esse filho metamorfoseado, gastam numa luta insana dos outros membros da família, primeiro para perceberem o que se passa, depois para se verem livres daquela coisa.
Segundo Vladimir Nabokov, a profunda ironia do texto está na apresentação de um ser humano disfarçado de insecto, que acaba destruído por três insectos disfarçados de seres humanos.
Como não pensar em Bertold Brecht e no seu Cículo de Giz caucasiano?
A meus pés agita-se a cidade, perdida em tantos projectos, que, apesar das aparências, não têm feito mais do que descaracterizá-la… um pouco à imagem do que os políticos estão a fazer desta Europa, cujo drama foi assim intuído e descrito pró artistas como Kafka e Brecht. E não falo de santos como Teresa Bendita da Cruz e Maximiliano Colbe, curiosamente todos da mesma área geográfica e quase mesmo meio cultural.

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